O italiano Luca Guadagnino tem um tema recorrente em sua filmografia: o amor tão intenso quanto impossível. Em Sonho de Amor (2009) e Me Chame pelo Seu Nome (2017), que lhe deu uma indicação ao Oscar de melhor direção, a paixão explode entre casais de amantes que têm contra si o mundo ao redor, a ordem social, que lhes impingem dor, separação, a despeito ou por causa de tudo que sentem. Até os Ossos, seu mais recente longa-metragem, vencedor do prêmio de melhor direção no Festival de Veneza deste ano, é uma obra de horror, mas, na sua essência, também é uma love story sem direito a um final feliz porque desafia tabus.
Em sua sequência inicial, Maren (Taylor Russell), uma adolescente aparentemente como muitas outras, aceita o convite de uma colega de escola e espera o pai dormir para ir a uma festa do pijama. Percebe-se que a garota tem uma rotina restrita, disciplinada pelo olhar paterno, e ela deseja se libertar.
Na casa da amiga, Maren e a colega estão deitadas no chão e trocam confidências em um clima de evidente homoerotismo. Quando sua amiga lhe mostra a nova cor de esmalte, laranja intenso, a protagonista coloca os dedos da menina na boca. Neste momento, há uma ruptura que choca o espectador e altera o tom da narrativa: Maren morde com força e arranca um pedaço do mindinho da garota, enchendo a tela de sangue. Não é a primeira vez que ela faz isso nem será a última.
Descobriremos que Maren é canibal desde a infância, o que faz com que o pai e ela tenham uma vida nômade. Toda vez que ela cede a seus impulsos, os dois fogem para outro estado, e tentem reiniciar a vida, na esperança de poderem viver uma existência normal, na vã expectativa de que a fome de carne humana da jovem se aplaque.
É quando o pai desiste de tentar reverter algo inerente à natureza de Maren, e a abandona a seu próprio destino, que ela parte em busca da mãe, que nunca conheceu, e, talvez, de uma explicação para seu instinto canibal. Essa procura a coloca na estrada em uma América (Estados Unidos) profunda, de vastas paisagens e horizontes, mas desoladora do ponto de vista humano.
A visão exótica de Guadagnino, italiano, faz toda a diferença na forma como essa jornada americana se constrói. Não há familiaridade nesse olhar, e sim um misto de encantamento e horror. Nessa viagem em busca de suas origens, Maren descobre não estar só: pertence a uma, digamos, estirpe de “comedores” que precisa de carne humana para sobreviver.
A visão exótica de Guadagnino, italiano, faz toda a diferença na forma como essa jornada americana se constrói.
Essa descoberta vem do encontro com Sully (o excelente Mark Rylance , vencedor do Oscar por Ponte de Espiões). Ele, que num primeiro momento parece ser uma espécie de mentor, ou figura paterna para a adolescente, lhe ensina que ela conseguirá “farejar” outros como ela. Mas ele a assusta e Maren foge, para mais adiante em sua road trip conhecer Lee (Timothée Chalamet, de Me Chame pelo Seu Nome), canibal e jovem como ela.
Fazendo lembrar o clássico Terra de Ninguém, de Terrence Malick, mas também Assassinos por Natureza, escrito por Quentin Tarantino e dirigido por Oliver Stone, Guadagnino mergulha seu casal de protagonistas marginais, e mortais, nas planícies do Meio-Oeste dos EUA ao mesmo tempo belas e profundamente melancólicas, como são seus personagens.

Nesse ponto não há como não pensar nos casais de amantes dos filmes de Guadagnino Sonho de Amor (adúlteros) e Me Chame pelo Seu Nome (homens bissexuais), que cedem ao mundo natural e às suas próprias naturezas, para viverem paixões outsiders, contra a ordem. Maren e Lee são canibais que buscam um lugar no mundo, embora sejam forçados a viver nas sombras.
A trama, baseada em um romance para jovens adultos, se passa nos anos 1980 e é uma potente alegoria sobre ser estranho, marginalizado, doente, ou queer, em um mundo assolado pelo fantasma da epidemia da AIDS, essa, sim, uma verdadeira fonte de horror àquela época.
Premiada no Festival de Veneza, como o melhor desempenho de um ator ou atriz jovem, Taylor Russell, no papel de Maren, é a alma de Até os Ossos, uma obra difícil de assistir e digerir (sem trocadilhos), mas fascinante, por conta ousadia na direção de Guadagnino. O diretor, também autor do roteiro, nos conduz a territórios muito sombrios, horripilantes até, em que gore (sangue e vísceras) e poesia se entrelaçam para contar uma arrebatadora história de horror e amor, e vice-versa.
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