Os tempos não estão fáceis. Nos últimos anos, acompanhamos uma série de atrocidades acontecendo, sendo realizadas em nome, inclusive, dos “bons costumes”, feitas por “gente de bem”. Esta é uma razão que acrescenta ao longa-metragem Até o Último Homem, que estreia nos cinemas nacionais nesta quinta-feira, uma dose de atualidade.
Baseado em uma história real, o filme é dirigido por Mel Gibson, indicado ao Oscar de melhor diretor (o longa tem mais cinco indicações, incluindo melhor filme e melhor ator). À primeira vista, Até o Último Homem segue a estrutura com a qual nos acostumamos em filmes de guerra, contudo, apesar de contar uma história que se passa durante uma batalha na Segunda Guerra Mundial, o filme até pode mas não deve ser visto como cinema de guerra tradicional.
Desmond Doss (Andrew Garfield, de A Rede Social) é um jovem adulto, temente a Deus, que decide se alistar pós-Pearl Harbor. Contudo, ele o faz sob uma condição: não empunharia armas, não mataria nenhum adversário e não trabalharia aos sábados. Sua escolha é motivada por duas razões: primeiro, um trauma de infância; segundo, sua crença religiosa. Por isto, opta por alistar-se como médico na forma de objetor de consciência, uma maneira de alistamento protegido pela suprema corte norte-americana em que o militar pode rejeitar participar de atividades que contrariem seus princípios religiosos, morais ou éticos. E é cercado por este paradoxo, a necessidade patriótica de lutar em uma guerra versus seus princípios religiosos (incluindo o mandamento “Não matarás”), que o longa de Gibson se desenrola.
É cercado por este paradoxo, a necessidade patriótica de lutar em uma guerra versus seus princípios religiosos, que o longa de Gibson se desenrola.
Uma das virtudes de Até o Último Homem está no fato de Gibson não estar interessado em questionar a postura de Doss e nem tampouco em exaltá-la. O drama lança olhar sobre essa naturalização da violência das “pessoas de bem” e questiona as formas encontradas para justificar tais atrocidades – o “mal necessário”. Desmond é um ponto fora da curva, e sua postura chega a soar ultrajante para seus companheiros de pelotão. Nenhum deles, ainda que muitos religiosos como ele, entendem as razões para que Doss aja desta maneira.
Esses questionamentos feitos a Doss às vezes causam a sensação de que estamos diante de um filme religioso, em que o personagem central tem sua fé posta à prova, tamanha a quantidade de conflitos os quais o personagem de Garfield enfrenta. Já sobre a atuação dele, a construção do personagem é interessante, mas há um exagero ao dar ares quase messiânicos ao soldado, que leva a pensar se o ator realmente merecia a indicação ao Oscar. Doss é exageradamente bom, e suas atitudes são inverossímeis em vários momentos. Já seus contrapontos, o sargento Howell (Vince Vaughn) e o soldado Smitty (Luke Bracey), são tão diametralmente opostos ao protagonista, tão selvagens frente à paz que representa o personagem de Garfield, que também torna difícil aceitá-los.
Mas se alguém ficar com receio de que o filme seja apenas uma reflexão sobre os conflitos internos de quem pratica o horror, é bom deixar claro que Mel Gibson não deixa de fora as longas sequências de batalhas repletas de sangue, decapitações e explosões, indo muito além do que já havia feito em seus filmes anteriores. E neste momento o filme aparenta mudar de rumo. O diretor parece tentar transmitir uma mensagem que corrobore este “mal necessário”, sumindo com qualquer resquício de humanidade no “inimigo”, como se isso enfatizasse a necessidade de exterminá-lo.
Certamente não é uma obra perfeita, talvez até exageradas as tantas indicações, mas não deixa de ser, também, uma boa metáfora do novo momento dos Estados Unidos, que sob a batuta de Donald Trump buscará, mais do que nunca, justificar medidas que representem o “mal necessário”.
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