É difícil que um abuso, sofrido ou realizado, não carregue em si uma teia intrincada de outros abusos e traumas, que formam um ciclo de dor, angústia e sofrimento. Essa é uma descoberta que a diretora estadunidense de origem mexicana Jasmín Mara López faz enquanto investiga e esmiúça seu processo de cura para o abuso sexual que sofreu do próprio avô na infância no documentário Beleza Silenciosa. O longa-metragem integra a mostra Foco Latino do Festival É Tudo Verdade.
São muitas as camadas do filme de López, e em boa parte delas encontramos todos os ingredientes que vítimas de violência sexual precisam encarar: a incompreensão do acontecido, o sofrimento com a realização do que passou, a culpa por não ter se defendido, as dúvidas sobre seu testemunho, as acusações de que seria a responsável, os questionamentos sobre suas reais motivações.
Parece que nada escapa à receita da tormenta que se instala na vida das vítimas. Beleza Silenciosa se passa quase trinta anos após o abuso, tempo que não foi suficiente para outras pessoas compreenderem o que elas mesmas passaram. Jasmín descobre ao longo da produção que outras pessoas de seu seio familiar foram vítimas do avô, como primas e a própria mãe, enquanto vem à tona o abuso sofrido pela irmã, feito pelo próprio pai.
López busca demonstrar a beleza do processo, como uma espécie de libertação do aprisionamento perpetrado pelos abusadores.
A diretora monta um caleidoscópio, usando imagens de arquivo com filmagens recentes, dando espaço à mãe, à irmã e a parentes para que se expressem, confrontando-se e aceitando verdades difíceis de serem digeridas.
López busca demonstrar a beleza do processo, como uma espécie de libertação do aprisionamento perpetrado pelos abusadores. Poder expressar sua dor é, então, uma forma de acesso ao ar, à vida. Nota-se esse desejo pelo tom metafórico que a diretora decide imprimir na montagem de sua obra, em que a felicidade e a amplitude de determinadas cenas sempre agem em serviço de um discurso muito mais amplo do que a palavra sugere.
A opção é ousada, e exige do espectador que dê um passo atrás de modo a enxergar o todo, buscando a compreensão das intenções da diretora. Ao fim, Beleza Silenciosa é, também, um acerto de contas com a família da diretora, mas não do modo convencional.
Jasmín Mara López não está em busca de culpados (inclusive, fica evidente que se há culpados, são os abusadores), mas de um estreitamento nas relações familiares, de forma a compreenderem tudo que passou e buscarem reconciliações e reencontros.
Primeiro, entre eles, entre os entes que romperam relação ou se distanciaram pela incompreensão do que se passou. Em um segundo momento, deles com eles mesmos, o perdão a si próprio, o reencontro com suas essências. Pelo trabalho da diretora, parece a única forma de, efetivamente, seguirem adiante.
O filme terá mais duas exibições no É Tudo Verdade. No dia 19, no Rio de Janeiro, e no próximo dia 21, em São Paulo. Confira a programação completa do festival no site do evento.
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