Filme escrito e dirigido pelo neozelandês Andrew Dominik, Blonde foi lançado pela plataforma de streaming Netflix, e é um desastre cinematográfico em vários sentidos. A começar pelo fato de distorcer o romance homônimo da escritora norte-americana Joyce Carol Oates, ficcionalização da vida pessoal da atriz Marilyn Monroe a partir de uma perspectiva feminina e intimista, o traindo e vulgarizando.
No livro, que não pretende ser uma biografia, mas um romance baseado em fatos reais, a autora retrata Marilyn como uma mulher que, desde a infância, se debate em um mundo masculino abusivo, que dela se serve sem piedade. Na superfície, o filme aparenta também ser sobre isso. Mas não é.
A personagem é, sim, submetida a uma infindável série de abusos e tormentos, porém Dominik, ao contrário de Joyce Carol Oates, não dá pistas de estar tão interessado em denunciar o machismo e a crueldade de Hollywood e suas engrenagens. Sua câmera aos poucos vai se revelando mais sádica do que empática, ou indignada. Em vez de desvelar os sofrimentos de sua protagonista, o diretor chafurda neles. E Blonde parece estar do lado do torturador.
A proposta do filme, em tese, assim como a do livro, é retratar subjetivamente o processo de deformação da personalidade e da arte de Marilyn, como resultado da ação direta dos homens de Hollywood: executivos, produtores, diretores e até atores. Dominik, contudo, não resiste à tentação de espetacularizar esse calvário e o reproduz de forma quase fetichista.
‘Blonde’: em busca do pai
O diretor se torna mais um desses homens abusadores. Seu roteiro, muito ruim, mal costurado, parte de uma tese única: Marilyn, através de toda a vida, foi vitimizada cruelmente em consequência de um fato fundador – a ausência paterna. A menina Norma Jeane Mortenson (Lily Fisher) é vítima do pai desconhecido, que nunca a quis; da mãe (Julianne Nicholson, excelente), doente mental e abusiva; e dos vizinhos, que a abandonam em um orfanato.
Ana de Armas, é preciso que seja dito, tem um grande desempenho no papel daquela que é, possivelmente, o maior ícone do cinema feito em Hollywood.
Já uma bela jovem, mas ainda Norma Jeane, ela é também vítima de fotógrafos que a registram nua e comercializam suas fotos. Com o nome de Marilyn Monroe (Ana de Armas), ela padece, no início da carreira, como vítima do chefão de um grande estúdio, Mr. Z(anuck) (David Warshofsky), que a estupra e lhe recompensa com pequenos papéis em filmes.
Em seguida, ela é explorada por um agente que manipula sua imagem e a força a ser prisioneira dessa persona unidimensional. Produtores e diretores a subestimam e, pagando menos do que vale, apenas se interessam em reproduzir o estereótipo que lhes traz dinheiro. O da loira tonta e sexy.
Até mesmo quando a atriz encontra acolhida em um romance a três, vivido com os filhos bissexuais dos astros Charles Chaplin e Edward G. Robinson, Marilyn é usada e abusada, tanto por eles, subcelebridades parasitárias, quanto pela câmera soft porn de Dominik, para o desfrute do olhar, sobretudo, masculino do espectador.
O diretor, autor do belo O Assassinato de Jesse James pelo Covarde Robert Ford (2007), peca aqui pelos excessos estéticos, por um maneirismo que não diz muito. A fotografia oscila entre cor e o preto-e-branco, por exemplo, sem uma justificativa dramática plausível, e resulta quase brega.
Já uma estrela de primeira grandeza, Marilyn também vai sofrer nas mãos de seus dois maridos, a quem ela chama de “papai”, o que é de um psicologismo meio rasteiro. O jogador de baseball Joe DiMaggio (Bobby Cannavale), a impede de trabalhar, é doentiamente ciumento e a espanca. O dramaturgo Arthur Miller (Adrien Brody), além de subestimá-la intelectualmente, usa a intimidade do casal, as confidências que ela lhe faz, em seu trabalho, contrariando um desejo expresso da atriz.
Mas, talvez, a sequência mais perturbadora, e repulsiva, seja a em que Marilyn é forçada pelo presidente John F. Kennedy (Caspar Phillipson) a fazer sexo oral, enquanto ele fala, na cama, ao telefone. A câmera, em um close obsceno, erotiza o ato de violência, um estupro, mostrando a atriz com o pênis presidencial na boca até que ele chegue ao orgasmo. Isso após ela ter dito aos agentes do Serviço Secreto, que a conduziam até Kennedy, que a relação entre eles não é sexual, mas um encontro de almas. Se a proposta do diretor era “revelar e denunciar” mais um abuso, o tiro sai pela culatra. O FILME é abusivo.
Marilyn Monroe: atriz subestimada

Ana de Armas, é preciso que seja dito, tem um grande desempenho no papel daquela que é, possivelmente, o maior ícone do cinema feito em Hollywood. Seu desempenho é magnético, perturbador. É impossível tirar os olhos dela, para o bem e para o mal.
Talvez a discussão mais interessante proposta pelo filme, porém ofuscada pelo tom sádico e simplificador da narrativa, é o conflito entre Norma Jeane e sua persona pública. Em um dos momentos mais memoráveis do longa, que tem 2h40 de duração, a personagem olha para uma foto de Marilyn em uma revista e diz: “Ela é bonita, mas não sou eu”.
Outra ótima sequência de Blonde retrata o teste que a atriz fez para o papel principal de Almas Desesperadas (1952), coestrelado por Richard Widmark e Anne Bancroft. Em sua busca pela personagem, ela mergulha em traumas emocionais do passado e entrega uma interpretação arrebatadora. O filme, sob a desculpa de se ocupar da vida íntima e pessoal da estrela, a subestima como artista, não se ocupando, por exemplo, de seu genial – e hoje amplamente reconhecido – talento para a comédia.
À exceção da mãe desequilibrada, e da vizinha que a abandona no orfanato, não há praticamente qualquer outra personagem feminina importante no filme, que parece vender a ideia de que toda a vida de Marilyn foi demarcada pelos homens de sua vida. Não há amigas íntimas, colegas de trabalho, confidentes, nada. Apenas secretárias, empregadas, parentes e amigas dos maridos. Subalternas ao mundo masculino, enfim. É estranho, seja essa uma escolha consciente ou insconsciente do diretor. E diz muito sobre Blonde.
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