O cinema de horror vem entregando uma boa safra de filmes que fogem de assuntos já batidos, como espíritos passando em frente ao espelho ou possessões demoníacas que já não surpreendem ninguém. Ao invés disso, as produções focam, cada vez mais, na complexidade humana, entendendo que assustador mesmo é o que se passa dentro da nossa cabeça. Filmes como Babadook (2014) e Corrente do Mal (2015) são exemplos recentes de longas que não se baseiam em sangue e homens mascarados para assustar.
A experiência, entretanto, não agrada um público muito grande. São filmes que exigem um certo compromisso, uma empatia pelos personagens, uma conexão que, muitas vezes, fica difícil para públicos menos exigentes. Por isso, Boa Noite, Mamãe, que estreia com um atraso absurdo em todos os cinemas do Brasil, pode fazer muita gente sair frustrada da sala, seja por toda a propaganda em torno do longa (“o filme mais assustador que você vai ver”), por ter um desenvolvimento lento ou por ser incômodo demais.
Boa Noite, Mamãe é um produção austríaca que conquistou público e crítica nos festivais mundo afora. Em uma casa enorme, fria e isolada no campo, entre bosques e plantações de milho, dois irmãos de 10 anos de idade, gêmeos, esperam sua mãe retornar. Quando ela volta, com a cabeça envolta em ataduras após uma cirurgia plástica, nada é como era antes. Severa e distante, ela fecha a família para o mundo exterior. Assim, sem conseguir ver seu rosto e estranhando seu comportamento, os gêmeos começam a duvidar que aquela mulher é realmente a mãe deles e tentam encontrar a verdade sobre o que realmente está acontecendo.
Boa Noite, Mamãe vale mais pelas suas perguntas do que pelas suas respostas.
Bebendo da fonte de Michael Haneke (Amor, Violência Gratuita, A Fita Branca), Boa Noite, Mamãe é minimalista, não tem pressa, pede ao público atenção nos detalhes, abusa da câmera fixa e de planos abertos. Mas diferente do que é vendido para o grande público, não tem um roteiro tão complicado de entender (é possível sacar o que acontece já na metade do filme). A reviravolta pode, sim, surpreender, mas não é como se fosse uma grande inovação e parece até mesmo fragilizar a obra. Então, a que se deve todo o burburinho em torno do longa?
A partir do momento em que a mãe volta para casa, a atmosfera do longa muda. Junto com ela e com as crianças, acabamos entrando num ambiente claustrofóbico, triste, sem esperança, uma pequena amostra do que seria viver em depressão. Logo, quase não há diálogos, a mãe dorme demais, tem preferência por apenas um filho, se irrita e não dá atenção a ninguém. Nas mãos dos excelentes diretores (e estreantes) Veronika Franz e Severin Fiala, a casa e os personagens se tornam opressivos e não estão na tela para agradar o público. Com a frieza da mãe e da desconfiança dos filhos, somos empurrados para uma batalha psicológica que não assusta pela trilha sonora nem por fantasmas, mas por percebermos o quão obscura pode ser nossa mente.
Assim, Boa Noite, Mamãe ganha força quando explora as lacunas, as respostas que o público espera e nunca vem. Por que não ficamos sabendo nada sobre o pai? O que são aqueles misteriosos telefonemas? Por que a mãe tem preferência por um dos filhos? O que estamos vendo é uma alucinação ou a realidade? O longa tem um ritmo lento, mas jamais desinteressante. A atuação dos meninos, interpretados por Lukas Schwarz e Elias Schwarz, é tão bem construída que a transformação das duas crianças ao longo da obra é o ponto alto do filme, graças à direção segura dos diretores, algo raro para estreantes.
Sua reviravolta é violenta, fez algumas pessoas saírem da sala de cinema em diversos festivais, é chocante e cruel, mas como dito anteriormente, acaba enfraquecendo uma narrativa que vinha se firmando na dramaticidade daquela família. Portanto, o filme vai, sim, impressionar mesmo aqueles que já descobrem o grande segredo da história, mas é na relação daquela família que o longa ganha legitimidade e faz dele assustador, justamente por ser estranhamente real. É a relação familiar que mais impressiona e entristece, como quando os filhos começam a perceber que aquela mulher, antes uma mãe feliz e carinhosa, já não lembra mais qual a música preferida dos filhos, já não lê os livros favoritos dos dois, já não sabe o que eles preferem no jantar. Boa Noite, Mamãe mostra como a depressão vai mudando não somente nossa personalidade, mas a de todos ao redor. Afinal, podemos ser a mesma pessoa mesmo quando nem nós sabemos mais quem somos?
Boa Noite, Mamãe vale mais pelas suas perguntas do que pelas suas respostas. Repleto de silêncio e elipses, o longa é um prato cheio para aqueles que gostam de cinema provocativo, sem que isso seja uma experiência necessariamente agradável. Boa Noite, Mamãe assusta mais por ser terrivelmente humano.
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