A luxemburguesa Anne Fontaine tem se mostrado uma profissional do cinema bastante talentosa em sua forma de conduzir as histórias que escolhe para contar, seja como diretora, seja como roteirista. Que o dignam integrantes de sua filmografia como Gemma Bovery – A Vida Imita a Arte (2014), Agnus Dei (2016) e Marvin (2017). Respectivamente, histórias sobre (1) uma mulher que não considera amarras sociais quando o assunto é satisfazer suas vontades sexuais; (2) freiras estupradas por soldados durante a Segunda Guerra Mundial; e (3) um menino que enfrentou homofobia.
Anne Fontaine revela-se uma cineasta sensível, disponibilizando filmes com roteiros bem delineados e assuntos que captam a atenção, com um viés progressista. Em Branca Como a Neve (2019), outra de suas produções, a liberação sexual da mulher é um dos assuntos mais sublinhados. Trata-se de uma releitura realista da história clássica escrita pelos irmãos Grimm, Jacob e Wilhelm. Uma releitura marcada por suspense, erotismo, charme, humor e uma bela fotografia que retrata uma região montanhosa no interior da França.
A relação fortemente visual do filme com o universo dos contos de fadas impressos em livros está na divisão da narrativa em capítulos bem demarcados, com a inserção de letreiros na tela. Outra forte relação desta releitura com a história original está no nome da protagonista. Claire (Lou de Laâge) é um nome que remete a claridade, luz, clareza, brancura, neve, enfim. Não raras vezes, personagens fazem menção à palidez da protagonista.
Pode-se deduzir que falar de alterações de comportamento é algo natural quando se trata dos franceses, esse povo que tem orgulho de sua história de revolução.
Na trama, Claire é alvo de ciúmes de sua madrasta Maud (interpretada pela sempre hipnotizante Isabelle Huppert) e, por isso, acaba parando em um vilarejo no qual ela reconstruirá sua vida. Mas as semelhanças com a história infantil e inocente param por aí. No percurso, Claire se encontrará com sete “príncipes”, com os quais terá (ou não) algum contato, digamos, bem mais íntimo.
Branca Como a Neve, enfim, é mais uma comprovação do quanto o cinema francês contemporâneo está direcionando suas lentes para a liberação sexual da mulher, por tantos séculos retratada como objeto do homem. Em obras como Lulu Nua e Crua (2013), Um Instante de Amor (2016), Um Homem Fiel (2018), Quem me Ama, me Segue! (2019) e a já citada Gemma Bovery…, as personagens femininas de destaque não alimentam pudores quando o assunto é alimentar os próprios desejos.
Em Lulu Nua e Crua, a protagonista (Karin Viard) decide não voltar para casa após enfrentar uma entrevista de emprego mal sucedida. Deixa filhos e marido à sua espera, concedendo a si mesma alguns “dias de férias”, sem destino definido. Nessas andanças repletas de liberdade (não sem alguns momentos difíceis, é verdade), acaba envolvendo-se com outro homem.
O drama Um Instante de Amor mostra Gabrielle (Marion Cotillard), que é obrigada a casar-se com um viúvo frequentador de prostíbulos. A história se passa no contexto da Segunda Guerra Mundial. O casamento totalmente forçado estabelece um contrato entre os dois, no qual sentimentos típicos da relação marido e mulher são deixados de lado. A união é oficializada única e exclusivamente para atender padrões sociais. Mas o cumprimento desse “dever social” de casar-se é posto em xeque quando ela se envolve com um militar (Louis Garrel).
Em Um Homem Fiel, a relação entre Marianne (Laetitia Casta) e o jornalista Abel (Louis Garrel) percorre uma trilha repleta de curvas, subidas, descidas, empecilhos, retornos e contornos. O relacionamento de ambos é marcado por uma série de questões que envolve um intervalo de nove anos, um filho e o fato de Marianne mostrar-se liberal em termos sexuais, propondo que o marido vá para os braços de outra. Mas seria esse um comportamento liberal ou estratégia? Eis uma interrogação que a produção lança para o lado de cá da tela. Existe uma carga significativa de suspense na história, mas o que se sobressai mesmo é a relação afetivo-sexual entre Abel e Marianne, com destaque ainda maior para a maneira específica como ela trata os próprios sentimentos e os alheios.
Já a comédia Quem me Ama, me Segue! apresenta Gilbert (Daniel Auteuil) e Simone (Catherine Frot), um casal de aposentados que tenta sobreviver enfrentando dificuldades financeiras e de convivência em uma aldeia no interior da França. Simone tem um caso com seu vizinho Etienne (Bernard Le Coq). Quando ele vai embora, o impacto que isso causa na protagonista é acentuado pela constante falta de dinheiro e o fato de Gilbert não ser tão amável. Simone resolve partir e essa decisão provoca uma disputa acirrada entre marido e amante para ver quem fica com ela.
Como se vê, um enfoque que mostra mais autonomia das mulheres nos relacionamentos afetivos e sexuais está bastante presente no cinema francês produzido nos últimos anos. Seriam enfoques que propõem mudanças comportamentais ou, simplesmente, refletem padrões comportamentais que já estão passando a vigorar na sociedade ocidental? Esse é um dos questionamentos provocados por essa coletânea de filmes disponibilizados pelos inventores da sétima arte.
Pode-se deduzir que falar de alterações de comportamento é algo natural quando se trata dos franceses, esse povo que tem orgulho de sua história de revolução. Afinal, são eles os responsáveis pelo famoso evento histórico que lançou aos quatro ventos do planeta a tríade liberdade, fraternidade e igualdade.
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