Em 2011, o cineasta dinamarquês Lars von Trier foi banido do Festival de Cannes por ter dito que entendia Hitler. Sete anos depois, retornou ao evento francês envolto em controvérsia. Agora não mais em razão de palavras ditas, mas da própria obra exibida: A Casa que Jack Construiu (2018). Conhecer essa informação parece ser fundamental para contextualizar uma leitura possível do filme.
A obra dá a impressão de ser uma espécie de vingança do diretor pelas críticas que recebeu porque, nela, Lars von Trier açoita o politicamente correto e expõe cruamente o sadismo, enquanto orquestra tudo com seu habitual senso estético apurado e desemboca, de certa forma, em um exercício de idolatria ao próprio ego: há menções a vários de seus filmes anteriores.
É verdade que o cineasta dinamarquês sempre demonstrou muita personalidade ao construir uma filmografia profundamente autoral. Basta lembrar de Os Idiotas (1998) e sua defesa do Dogma 95, movimento que Lars von Trier lançou, juntamente com Thomas Vinterberg, priorizando luz e som diretos, câmera na mão, baixo orçamento, realismo, enfim, o rompimento com o que considerava artificialismo de Hollywood. A própria sinopse de Os Idiotas diz muito nesse contexto: algumas pessoas reúnem-se para dar vazão ao “idiota interior”, fingindo terem deficiência mental e comportando-se de forma socialmente inaceitável.
Mas se Lars von Trier sempre foi um cineasta provocador, em A Casa que Jack Construiu ele “pesa a mão” na composição do tema “violência”. Seus já conhecidos intentos de chocar, provocar, tornar o espectador desconfortável diante do enfoque tanto textual quanto imagético de alguns assuntos estão presentes. Só que, desta vez, eles foram potencializados.
Não seria tão ousado, insano ou absurdo interpretar que A Casa que Jack Construiu poderia chamar-se A Trajetória que Lars von Trier Percorreu. O fim do filme, inclusive, é muito emblemático nesse sentido.
O filme conta a história de um assassino em série, interpretado por Matt Dillon, que mata 61 pessoas (a maioria mulheres). Desde criança, Jack, o protagonista, demonstra propensão à psicopatia. A cena envolvendo um ato violento com um pato não deixa dúvidas quanto a isso.
Os fotogramas contêm, ainda, cenas abordando atos violentíssimos contra crianças que fizeram várias pessoas saírem da sala do cinema em Cannes. Segundo um dos personagens, Jack encara o sadismo como “obra de arte”. Essa afirmação resume com invejável precisão aquela que parece ser a ideia que norteou o próprio diretor ao lançar este trabalho.
A Casa que Jack Construiu é hermético, não palatável para muitos, ao mesmo tempo em que tem capacidade de provocar, lançar verdades inconvenientes, falar de coisas das quais, geralmente, as pessoas fogem.
Considerando tudo o que foi exposto aqui, não seria tão ousado, insano ou absurdo interpretar que A Casa que Jack Construiu poderia chamar-se A Trajetória que Lars von Trier Percorreu. O fim do filme, inclusive, é muito emblemático nesse sentido.
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