E assim se passaram 20 anos. Sim, foram necessárias duas décadas para que Chatô, o Rei do Brasil, longa-metragem de estreia do ator Guilherme Fontes chegasse finalmente aos cinemas. Durante esse período, o (então) jovem astro do cinema e da televisão, revelado no fim dos anos 80, foi do céu ao inferno, acusado de tudo e mais um pouco. Entre outros motivos, por ousar, logo em seu primeiro trabalho como cineasta, adaptar a épica e complexa biografia homônima do jornalista Fernando Moraes, um best seller premiado.
Má gestão do orçamento, sonegação, egocentrismo, megalomania: a lista de possíveis delitos que Fontes pode ter cometido é extensa, mas o fato é que o filme, cuja gestação não tem praticamente paralelos na história do cinema nacional, surpreende. Pelo bem e pelo mal. Talvez porque muitos apostavam em um vexame completo, subestimando imensamente o talento de Fontes. A julgar pelas críticas positivas, em grande medida merecidas, que vem recebendo, ele parece ter conseguido rir por último.
Uma das razões pelas quais Chatô, o Rei do Brasil pode ter resistido tão espantosamente bem ao tempo talvez seja o fato de Guilherme Fontes não ter levado a obra de Morais, e a grandiosidade de seu protagonista, tão a sério. Pelo contrário: Fontes, que coescreveu o roteiro com João Emanuel Carneiro (de Central do Brasil e da telenovela A Regra do Jogo) e Eric Nepomuceno, optou por uma narrativa antirrealista, entre a alegoria e a farsa.
Fontes escolheu não adotar um tom reverente ao tratar de Assis Chateaubriand (1892-1968), vivido por um Marco Ricca em estado de graça. Em vez de contar a história de Chatô de forma linear, o roteiro faz uma manobra ousada. A trajetória do empreendedor, que construiu um império midiático no país a partir da década de 1930, é tratada como uma espécie de ópera bufa, carnavalizada. Essa opção desobriga Fontes tanto de ser fiel ao fatos, que são livremente recriados de forma meio fabular meio anedótica, e também permite que as visíveis limitações de produção sejam usadas a favor do filme, e não contra.
Uma das razões pelas quais Chatô, o Rei do Brasil pode ter resistido tão espantosamente bem ao tempo talvez seja o fato de Fontes não ter levado a obra de Morais, e a grandiosidade de seu protagonista, tão a sério.
A vida do empresário, da infância humilde na Paraíba aos bastidores do poder na Capital Federal, é narrada de maneira intrigante: após sofrer uma trombose que o deixa praticamente incapaz, Chatô é submetido a um julgamento transmitido ao vivo pela Tupi, primeira emissora de televisão no Brasil, por ele fundada no anos 50. Ao programa, seja como testemunhas de defesa ou acusação, são convidados todos que de alguma forma tiveram papel importante na jornada empreendida pelo empresário. Esposas, parentes, correligionários, inimigos e comparsas. Está todo mundo lá.
Propositalmente, Chatô é retratado como um personagem caricato, maior do que a vida. É um anti-herói como o Charles Foster Kane, outro magnata da comunicação, encarnado por Orson Welles no clássico Cidadão Kane, em cuja estrutura narrativa o filme de Guilherme Fontes tenta de alguma forma se espelhar. Também guarda semelhanças com Guido, protagonista do autobiográfico 8 1/2, de Federico Fellini, um delírio surreal sobre um diretor de cinema com bloqueio criativo. Há, portanto, no longa, uma forte intenção metalinguística, intertextual, que, apesar de pretensiosa até a medula, pode ter sido sua boia salva-vidas na luta contra os 20 anos em que esteve no limbo. O resultado é tudo menos burocrático ou televisivo.
Quem leu o livro e for ao cinema em busca de fidelidade histórica, coerência ou precisão, vai se decepcionar. A jornada do paraibano, que usou jornais e emissoras de rádio e televisão em benefício próprio, para enriquecer, chantagear e passar a perna na concorrência, contada de forma tão rica em detalhes no volumoso livro de Fernando Moraes, se transfigura. Até mesmo Getúlio Vargas (Paulo Betti, em atuação fora do tom em vários aspectos), figura-chave na biografia de Chatô e no período histórico retratado, se apresenta como uma releitura quase insultante do estadista e ditador gaúcho – o sotaque riograndense é medonho. Ainda assim, esse Getúlio, também algo caricato, é interessante. Chega ao ponto de aparecer como fantasma após seu suicídio em 1954, para testemunhar a favor do empresário.
Jagunço, fanfarrão, corrupto, arrivista, inescrupuloso. O Chatô do filme é tudo isso, e construído com traços macunaímicos, para simbolizar um Brasil com pouco ou nenhum caráter. Assim como quase todos os demais personagens do filme, que compõem um retrato perturbador da história nacional, ao mesmo tempo distante e espantosamente atual. Talvez também por isso o longa-metragem de Fontes, com todas as suas falhas, tenha sobrevivido bem ao tempo. Não perdeu a validade e causa bastante desassossego. Já é bastante coisa.
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