Há algo de institucional, meio chapa-branca, no documentário Chico: Artista Brasileiro, desde ontem em cartaz em todo o pais. Isso quer dizer que o filme é ruim ou desinteressante? Não, de forma alguma. Mas não vá ao cinema esperando ver uma obra inquietante, ou muito reveladora, sobre Francisco Buarque de Holanda, que no ano passado completou 70 anos de idade.
O filme de Miguel Faria Jr., também diretor de Vinícius (2005), sucesso de público, percorre um itinerário até certo ponto previsível pela vida e obra do compositor e escritor. É mais do que uma “biografia autorizada”, realizada com o consentimento de seu personagem central: Chico é o principal narrador de sua própria história, embora o longa-metragem também traga o depoimento de pessoas de seu círculo mais próximo, como uma de suas irmãs, a cantora Miúcha, e o cineasta Ruy Guerra, com quem escreveu o musical Calabar, o Elogio da Traição (1973), proibido pela censura durante o regime militar.
Há outros “coadjuvantes” interessantes, como o parceiro Edu Lobo e o baterista Wilson das Neves, seu amigo e há anos integrante da banda que o acompanha. As falas são boas, sinceras, mas cuidadosamente lapidadas para integrar o discurso do filme.
Essa proximidade calculada, que faz de Chico, além de principal narrador, uma espécie de quase coautor do documentário, tem seus efeitos colaterais. Ainda que disfarçado, há no filme um certo tom de ode ao artista, que por mais merecido que seja – Chico é, sem dúvida, dono de uma obra monumental –, coloca o longa sob uma luz que se não é suspeita, resulta um pouco limitadora.
O documentário não chega a problematizar seu personagem central, tampouco busca desconstruir o mito em torno dele erguido desde que se tornou um ídolo nacional, com pouco mais de 20 anos, em meados da década de 1960.
Essa proximidade calculada, que faz de Chico, além de principal narrador, uma espécie de quase coautor do documentário, tem seus efeitos colaterais.
É verdade que há no filme alguns depoimentos preciosos. Chico fala de sua infância na Itália, país onde se exilou voluntariamente no fim dos anos 1960, quando se sentiu acuado pela ditadura. Sobre esse período, ele conta algumas histórias deliciosas, como uma turnê mal sucedida ao lado do amigo Toquinho, quando abriam shows para a estrela norte-americana Josephine Baker. Também aborda com bastante carinho de seu casamento de 30 anos com a atriz Marieta Severo, da separação e de hoje viver só – garante não se incomodar com a solidão. Mas o filme não vai muito além de um limite negociado.
Tanto quanto é um filme sobre Chico, o documentário é, visivelmente, um veículo para ele, em sua homenagem. E isso faz muita diferença.
Irmão alemão
A exemplo de Vinicius, Chico: Artista Brasileiro é um documentário musical, no qual as canções do compositor, em sua própria voz e de vários convidados (entre eles, a portuguesa Carminho, Adriana Calcanhotto, Mart’nália, Péricles e Monica Salmaso), não são mero adereço, e ganham caráter narrativo. Esse recurso funciona bem.
O filme abre com Chico, no tempo presente, cantando, em estúdio, “Sinhá”, parceria com João Bosco e uma das composições mais potentes de sua safra mais recente. A letra é entoada em primeira pessoa por um escravo punido, acusado de ter cobiçado sua senhora, que talvez tenha projetado nele um desejo que era seu.
Esse jogo algo erótico que desemboca em martírio parece servir de ponto de partida para que Chico possa falar do pai, o historiador e sociólogo Sérgio Buarque de Holanda, um dos maiores pensadores brasileiros, com quem Chico manteve uma relação intelectualmente intensa, mas emocionalmente distante.
Perpassa toda a narrativa de Chico: Artista Brasileiro a busca do compositor pela história do irmão que nunca conheceu, fruto de um caso amoroso vivido pelo pai com uma fraulein na Alemanha nos anos 30, antes que se casasse com sua mãe.
Quem lhe contou da existência desse irmão, que também se chamava Sérgio, foi o poeta Manuel Bandeira, e Chico já tinha 22 anos. Era um segredo de família.
Ao longo da narrativa do filme, esse mistério, tema do último livro de Chico, O Irmão Alemão, vai sendo desvendado até culminar com uma viagem a Berlim, onde o artista vê imagens do irmão, Sergio Ernst, que foi jornalista, ator e cantor na antiga Alemanha Oriental, mas morreu na década de 1980, com pouco mais de 50 anos, sem que eles tivessem a chance de ser conhecer.
É um entre tantos momentos emocionantes de um filme tão bem realizado quanto é cauteloso, mas que deve fazer sucesso, e principalmente agradar bastante os fãs de Chico, que não são (somos) poucos.
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