Há filmes que não se revelam de imediato; eles precisam de tempo para se desdobrar. São obras que não se limitam a uma única interpretação, exigindo do espectador mais do que uma simples observação – é preciso entrega, imersão. Cidade dos Sonhos (2001), de David Lynch, é uma delas. Talvez por isso, o relançamento nos cinemas brasileiros, com cópias restauradas em 4K – um formato que acentua texturas, contrastes e profundidade de cor – seja tão oportuno. Rever essa obra-prima meticulosamente reconstruída não é apenas uma oportunidade de reencontro; é a chance de (re)sonhá-la, de mergulhar novamente em seus enigmas e sensações.
Lynch é um autor de superfícies – mas superfícies que tremem. Nada em sua obra é estável. Tudo se move sob o verniz de uma aparente normalidade. Em Cidade dos Sonhos, esse jogo entre o que se vê e o que se oculta atinge um grau de sofisticação raro, mesmo dentro de sua filmografia. O filme nasce como projeto de série para a televisão, rejeitado por uma emissora que talvez tenha sentido, já ali, que o que Lynch propunha não era linear, vendável, tampouco decifrável. Dois anos depois, o diretor retoma o material, costura novos fragmentos, e o transforma em longa-metragem. Mas o que poderia ser apenas remendo se torna enigma.
A trama, se é que se pode chamá-la assim, gira em torno de Betty Elms (Naomi Watts), jovem atriz que chega a Los Angeles embalada por um otimismo anacrônico, e cruza o caminho de uma mulher amnésica (Laura Harring) que adota o nome de Rita, numa referência direta à Gilda de Rita Hayworth. A partir desse encontro, o filme se instala como um simulacro de investigação – uma busca por pistas, nomes, significados. Mas, aos poucos, percebe-se que o que está em jogo é outra coisa: a própria possibilidade de um sentido.
Como em um espelho partido, as identidades se desdobram e se confundem. Betty é também Diane. Rita é também Camilla. A história muda de tom, muda de foco, e o que antes parecia sonho ganha contornos de delírio. O cinema de Lynch é, desde sempre, interessado em máscaras, duplos, cortinas vermelhas e identidades oscilantes. Em Cidade dos Sonhos, essas obsessões ganham uma dimensão ainda mais amarga: o sonho hollywoodiano implode de dentro para fora, revelando não só seus mecanismos, mas sua crueldade estrutural.
O que Cidade dos Sonhos propõe é menos um comentário sobre a indústria e mais uma travessia sensorial pelo inconsciente do espetáculo. Em uma das cenas mais poderosas, no clube Silencio, Lynch desmonta o próprio cinema: uma cantora interpreta uma versão hispânica de “Crying”, de Roy Orbison, com emoção dilacerante — mas, de repente, desaba no palco, enquanto a música segue. Nada é ao vivo. Nada é real. É tudo ilusão. Mas há verdade na ilusão — talvez, a única possível.
O que Cidade dos Sonhos propõe é menos um comentário sobre a indústria e mais uma travessia sensorial pelo inconsciente do espetáculo.
Esse teatro da falsidade se estende também ao diretor Adam (Justin Theroux), personagem cujo arco revela a impotência criativa diante das forças obscuras do poder econômico e simbólico. Confrontado por produtores mafiosos e por um cowboy espectral que parece saído diretamente das alucinações de Twin Peaks ou de Estrada Perdida, ele se vê encurralado – como se o próprio ato de filmar fosse um pacto com o diabo.
Assistir a Cidade dos Sonhos hoje, mais de duas décadas após seu lançamento, é confrontar-se com um cinema que não subestima a inteligência do espectador, mas que também não lhe oferece chão firme. É um filme que aposta na dúvida como motor narrativo. E que, como poucos, compreende o cinema como dispositivo de montagem de identidades – íntimas, culturais, imagéticas.
Rever este pesadelo em 4K, com sua estética restaurada em minúcias, é deixar-se perder outra vez na névoa. É como visitar um lugar familiar que já não reconhecemos completamente. As texturas ganham espessura. As sombras se tornam mais densas. E o azul da caixa misteriosa parece ainda mais hipnótico.
No fim, talvez seja isso que Cidade dos Sonhos nos propõe: não um enigma a ser resolvido, mas uma experiência a ser atravessada. Como os próprios sonhos – que não pedem lógica, mas escuta.
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