As farsas, no âmbito das artes, sejam na literatura, no teatro ou no cinema, são uma expressão artística potente para discutir temas nevrálgicos, atemporais. Talvez porque, ao fazerem uso do humor, da sátira, conseguem trazer uma bem-vinda leveza às histórias que contam, sem esvaziá-las ou banalizá-las. Esse é o caso do saboroso O Crime É Meu, mais recente longa-metragem do diretor François Ozon, em cartaz nos cinemas brasileiros, depois de fazer sucesso de bilheteria na França.
No centro da trama está Madeleine Verdier (Nadia Tereszkiewicz, vencedora do César de atriz revelação por Les Amandiers), jovem atriz pobretona, acusada pelo assassinato de um famoso produtor teatral, que tenta violentá-la. Com a ajuda de sua melhor amiga, a advogada Pauline (Rebeca Marder), ela acaba sendo absolvida sob a alegação de que agiu em legítima defesa.
O caso ganha enorme notoriedade na França da virada da década de 1930 e faz de Madeleine uma celebridade, até a verdade vir à tona: a autora do crime é, de fato, Odette Chaumette (Isabelle Huppert, excelente como de hábito), estrela decadente esquecida do cinema mudo que reivindica para si toda a notoriedade alcançada pela jovem atriz. Para se manter em silêncio, ela exige 300 mil francos e a oportunidade de retornar a seus dias de glória.
Em O Crime É Meu, as três personagens principais – Madeleine, Pauline e Odette – se digladiam com diferentes formas de machismo reinante à época em que a trama se desenvolve.
Como já fez em outros de seus filmes, como 8 Mulheres (2002) e Potiche – Esposa Troféu (2010), Ozon volta a discutir, por meio da sátira, quase flertando com o pastiche, a condição feminina dentro da estrutura patriarcal. Em O Crime É Meu, as três personagens principais – Madeleine, Pauline e Odette – se digladiam com diferentes formas de machismo reinante à época em que a trama se desenvolve.
Madeleine, aspirante a atriz jovem e bela, é tratada como objeto sexual. Nem mesmo o noivo, por ela apaixonado, quer se casar com ela por conta de sua condição social. Pauline, por sua vez, é advogada formada (e talvez lésbica), mas não encontra espaço no ainda hiper masculino mundo do Direito. Por fim, Rebeca, após chegar ao estrelato em uma forma de cinema obsoleta, é descartada por ser considerada velha demais, uma peça de museu.
Ozon, cujo cinema oscila entre obras mais leves, como esta, e dramas mais densos, a exemplo Verão de 85, oferece em O Crime É Meu um espetáculo muito bem realizado cujo foco, além da discussão feminista, os limites entre a chamada vida real e a representação. É interessante como, em alguns momentos, o cineasta borra essas fronteiras para evidenciar o caráter performático da existência humana, seja nos palcos, nos tribunais ou entre quatro paredes.
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