No auge da MTV, na década de 1990, todos os anos, no dia primeiro de dezembro, a emissora exibia uma programação especial para conscientizar a audiência sobre a luta contra a AIDS. Eram atrações, shows e documentários que faziam um importante serviço de colocar o tema na pauta dos jovens, mas havia basicamente um único viés: era preciso evitar a contaminação a todo custo.
Ou seja, a discussão não avançava muito para além disso. E o que acontece com as pessoas que possuem o vírus HIV no seu organismo? O que dizer, o que falar sobre elas? Após anos da mídia martelando imagens de morte e sofrimento (só lembrar os casos clássicos de Cazuza e Lauro Corona, por exemplo), será que as pessoas HIV+ estão condenadas a este tipo de representação – que, inclusive, é bastante injusta com a realidade?
O documentário Deus tem AIDS, dirigido por Fábio Leal e Gustavo Vinagre, é um importantíssimo documento que enfrenta estas questões. Premiado como melhor filme pelo júri oficial e popular no Queer Porto, o longa tensiona uma provocação. Quarenta anos depois do surgimento da epidemia de AIDS, a doença segue existindo. Mas a situação é completamente diferente: há milhões de pessoas com o vírus HIV no seu corpo e que provavelmente morrerão um dia por outra razão que não a AIDS.
O clichê do “para morrer, basta estar vivo” parece ser ignorado quando se pensa sobre AIDS. Há ainda muita gente que não vê outra alternativa a não ser permanecer no “armário” do HIV, conforme postula vários dos entrevistados do documentário. E isso nada mais é que um sintoma de uma sociedade que segue perpetuando imagens imprecisas e preconceituosas sobre estes sujeitos.
‘Deus tem AIDS’: a vida com HIV mediada pela arte
Deus tem AIDS ouve oito entrevistados que são HIV positivo: sete são artistas e um é médico pediatra. Todos eles resolveram sair da invisibilidade e usar o tema do HIV como um manifesto – sobre seu direito de existir para além do estigma. De ser quem são, de entender que, inclusive, uma doença pode ser uma libertação para se viver a vida de modo mais pleno. Não por acaso, um dos entrevistados diz: “eu quero criar imagens de pessoas soropositivas gozando”.
Após anos da mídia martelando imagens de morte e sofrimento, será que as pessoas HIV+ estão condenadas a este tipo de representação?
Em um dos depoimentos mais fortes, o poeta Marcos Visnadi, acometido por depressão durante toda a vida, afirma que receber o diagnóstico o levou a sair do precipício. Ele cita Susan Sontag para dizer que, por vezes, a doença é uma libertação – uma oportunidade de ver o outro lado. Quase todos nós, aliás, passamos a vida toda fugindo dessa sombra representada pela mortalidade.
A artista Micaela Cyrino, que adquiriu o HIV pelo parto, faz um trabalho interessantíssimo: ela realiza performances em que expõe a sua sorologia para os outros. Ela explica é uma troca de lado, pois ao invés de ficar constrangida e temerosa que os outros descubram sobre sua condição, a artista deixa que os outros lidem com isto.
São testemunhos inspiradíssimos e fortes que fazem com que se fortaleça entre nós o que deveria ser o óbvio: falar sobre AIDS deveria ser assunto de todos. Se essa conversa existisse de modo mais franco e frequente, provavelmente a imagem sobre a doença seria outra.
Uma conversa sobre política
Mas por que esta visão redutora da realidade se perpetua por quarenta anos? Uma das respostas tem fundo político. Deus tem AIDS não se furta de expressar todos os retrocessos do governo Bolsonaro nesta abordagem, cortando o financiamento de remédios (o Brasil é referência mundial no tratamento da AIDS) e criando um discurso de que pessoas soropositivas são um custo para o país.
Evidencia-se, obviamente, o viés moralista e religioso (no mau sentido da palavra): estas pessoas sofreriam alguma condenação divina em razão de uma vida devassa. Ou seja, o ódio e a omissão de certos grupos são a razão pela qual estes estigmas permanecem circulando na cultura.
E isso, por si só, justifica o inspirado título do documentário: Deus tem AIDS aproxima tudo o que há de humano, como as doenças, de toda a população. O assunto da AIDS é de todos, não apenas de quem leva o vírus no corpo. Os que não o têm, arrogantemente, se sentem alheios a esta conversa.
Por fim, o ator Ronaldo Serruya faz uma provocação interessante: esta onda de retrocessos pode fazer com que mais gente saia do “armário” do HIV, pois caberá a elas gritar para assegurar seu direito à vida e a um tratamento de saúde digno.
Ao incomodar e desacomodar muitas certezas de quem assiste, Deus tem AIDS é um filme extremamente necessário a todos os brasileiros – mesmo que eles não estejam a fim de falar sobre isso.
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