Salvador Mallo, protagonista de Dor e Glória, novo longa-metragem de Pedro Almodóvar, é um alter ego do cineasta espanhol. Chegando aos 60 anos, ele enfrenta um bloqueio criativo que é, ao mesmo tempo, causa e consequência de uma profunda crise existencial em que o personagem se vê preso, imerso – na emblemática imagem que abre o filme, após os lindos créditos iniciais, o diretor está sentado no fundo de uma piscina e a câmera mostra uma cicatriz em seu tronco. Sinal de que sua dor se estende ao corpo físico.
Incapaz de produzir, Salvador se vê tomado por um turbilhão de lembranças, muitas delas reminiscências de sua infância, que se intercalam às cenas do tempo presente, como se dessem pistas do porquê do estado emocional que o impede de trabalhar. Há algo preso nesses escombros que precisa vir à tona, emergir.
Um dos primeiros flashbacks nos transporta à beira de um rio, onde a mãe de Salvador, Jacinta (Penélope Cruz), lava roupas em companhia do filho, ainda muito pequeno, e de outras mulheres. É uma cena solar: as mulheres reluzem, vertendo sensualidade, cantam e dançam enquanto estendem as peças, entre elas grandes lençóis, sobre arbustos.
Fica aqui evidente a proximidade, a cumplicidade entre Jacinta e Salvador. Essa relação, nem sempre tão pacífica, é uma das chaves para compreender os conflitos enfrentados pelo protagonista ao longo da vida e no tempo presente.
Qualquer semelhança entre as premissas de Dor e Glória e Oito e Meio, de Federico Fellini, não é mera coincidência. Almodóvar explicita essa intertextualidade ao colocar em cena um pôster do clássico italiano, que também inspirou os musicais All That Jazz – O Show Deve Continuar (de Bob Fosse) e Nine (de Rob Marshall).
Em todas essas obras, os personagens centrais masculinos se digladiam com o passado, que os impede de seguir em frente, de voltar a criar, mas também brigam com a condição de serem homens. No caso de Salvador, algo, literalmente, o sufoca.
Qualquer semelhança entre as premissas de Dor e Glória e Oito e Meio, de Federico Fellini, não é mera coincidência.
Como não consegue trabalhar, produzir, o personagem tateia no breu, em busca de um caminho de volta à luz. Por isso, tantos close-ups de seu rosto envelhecido, amargurado. Não é difícil compreender por que Almodóvar escolheu para o papel Antonio Banderas, premiado no Festival de Cannes este ano por seu desempenho, tão intenso quanto sutil, repleto de filigranas.
Com ele, o cineasta realizou alguns de seus filmes mais importantes, como Matador (1986), A Lei do Desejo (1987), Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos (1988), Ata-me (1989) e, mais recentemente, A Pele Que Habito (2011). A face de Banderas não deixa de ser, portanto, um mapa para o cinema de Almodóvar.
A jornada de Salvador em busca de suas respostas se inicia, de certa forma, quando ao conversar com uma velha amiga, Zulema (Cecilia Roth, de Tudo sobre Minha Mãe), ele descobre o paradeiro de Alberto Crespo (Asier Etxeandria), ator com quem fez um filme há quase 30 anos, película que em breve será reexibida em uma sessão especial comemorativa. Os dois não se falam desde as filmagens, porque o diretor não concordou com o que Alberto fez com o personagem que ele escreveu. O ajuste de contas, de certa forma, coloca tanto um como o outro em movimento.
Fica evidente o caráter psicoanalítico de Dor e Glória, a começar pelo título: Salvador precisa se reconectar com seu passado para livrar-se do peso que o atormenta no presente. É lindo, por exemplo, o seu reencontro com Federico (o argentino Leonardo Sabaraglia, de Prata Queimada), um grande amor da juventude com quem perdeu contato há muito tempo.
O mais pessoal dos filmes de Almodóvar, Dor e Glória dialoga não apenas com a biografia do cineasta, mas, também, com toda a sua obra, a começar pela escolha de Banderas como protagonista, e pelo uso de cores fortes, sobretudo o vermelho, uma de suas marcas registradas. Mesmo quando contido, o cinema de Almodóvar é arrebatador e se desdobra neste novo filme.
O seminário onde Salvador, assim como o próprio Pedro, vai estudar na infância, por insistência materna, parece ser o mesmo que tem papel central em Má Educação (2004). Estrela de tantos de seus filmes, como Volver (2006) e Abraços Partidos (2009), sem falar de Carne Trêmula (1997) e Tudo sobre Minha Mãe (1999), Penélope Cruz ressurge aqui, madura e mais linda do que nunca, como uma versão idealizada da mãe, em um filme dentro do filme, que também vai falar sobre o resgate de um momento fundamental perdido no tempo: o da descoberta do desejo, el deseo, não por acaso nome da produtora de Almodóvar, que aqui, mais uma vez, mostra por que é um dos maiores artistas de nosso tempo.
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