Ocombustível que move a narrativa de Elvis, cinebiografia do Rei do Rock Elvis Presley, em cartaz nos cinemas, é a morfina. A droga, alucinógena, impacta a percepção no narrador do filme, o “coronel” Tom Parker, empresário do cantor, que está em estado terminal de câncer, à beira da morte.
Vivido por um Tom Hanks assustador, exagerado, o personagem, só e em ruína financeira, transita entre a culpa, por ter explorado o artista até a morte, e o orgulho de dele ter feito um dos maiores nomes da história da música no século 20.
É essa visão delirante, alterada, que dá o tom ao longa-metragem de Baz Luhrmann (de Moulin Rouge – O Amor em Vermelho e O Grande Gatsby).
Essa escolha faz enorme sentido se pensarmos na obra do cineasta australiano, conhecido pela exuberância estética de seus filmes, que divide desde sempre a crítica. Luhrman é considerado ousado, inventivo, por alguns, e maneirista, até cafona, por outros.
Ao optar por construir o roteiro de Elvis a partir de ponto de vista de um personagem que viveu toda uma vida sob identidade falsa e, em seus derradeiros momentos de vida, tem seu olhar entorpecido, Luhrmann, um antirrealista convicto, se permite ressignificar a biografia segundo a sua cartilha estética, que conta como cocriadora Catherine Martin, que além de sua esposa, é diretora de arte e figurinista de todos os seus longas, já premiada com quatro Oscar, por Moulin Rouge e O Grande Gatsby.
A jornada do Rei do Rock foi toda marcada pelo excesso. Portanto, em Elvis, que já arrecadou US$ 170 milhões ao redor do mundo, há uma dicotomia que o atravessa.
De um lado, há o espetáculo, por meio de fogos de artifício, muito neon, cenários grandiosos, trilha sonora intensa e, por vezes, modernizada, com a presença de nomes da música pop contemporânea (como Doja Cat, Eminem Kacey Musgraves).
De outro, mais sombrio, temos o vilão, Parker, e seu poder perverso sobre Elvis, a morte da mãe em decorrência do alcoolismo, a dependência química, que terminará por tirar a vida do cantor, em 1977, quando ele tinha apenas 42 anos.
Sob a regência de Luhrmann, uma faceta não existe sem a outra. E a tragédia de Elvis é, em certa medida, espetacular. E isso pode incomodar a alguns, que podem interpretar essa escolha como superficial.
É importante também dizer aqui que o filme é tanto sobre show (música, criatividade) quanto business (gerenciamento e controle), uma vez que a relação entre Elvis e Parker é fundamental ao roteiro. Afinal, é a complexa e abusiva relação entre o cantor e o empresário que dita o ritmo da narrativa.
‘Elvis’: raízes negras
Ao longo de suas quase três horas de duração, Elvis tem a ambiciosa missão de retratar a vida do Rei do Rock da infância à morte, o que é sempre uma escolha perigosa, porque condensar uma existência em uma única narrativa geralmente resulta em superficialidade. Como a perspectiva de Parker é errática, fragmentada e delirante, a estruturação mais episódica acaba funcionando.
É politicamente importante a decisão de Luhrmann, ao retratar as origens religiosas e humildes de Elvis no estado do Mississippi, defender com ênfase a tese de que as raízes do canto e da performance física de Elvis, e do próprio rock, estão fincadas na black music, original do sul dos Estados Unidos.
O cantor teve convívio direto com os negros, sua cultura e religiosidades, e esse contato foi definitivo em sua formação tanto como artista e pessoa. É arrebatadora a forma como o cineasta narra visualmente esse processo, da infância até o início da carreira de Elvis.
Eletriza a sequência em que ele canta, ao vivo, “Baby Let’s Play House”, do músico de blues Arthur Gunter, balançando a pélvis em todas as direções possíveis, insinuando movimentos sexuais. Meninas e mulheres, nos conservadores anos 1950, reagem “orgasmicamente”: gritam, se descabelam, se levantam de seus assentos, se entregando ao desejo que aflora diante desse gatilho chamado Elvis. É o momento em que Parker percebe que tem um astro diante de si.
O cantor teve convívio direto com os negros, sua cultura e religiosidades, e esse contato foi definitivo em sua formação tanto como artista e pessoa.
Dentro dessa perspectiva fáustica, em que o jovem Elvis negocia seu futuro artístico, mas também sua alma, com Parker, que aqui tem o papel de um Mefistófoles demoníaco, capaz de sugar-lhe corpo e alma até o bagaço, o jogo entre os dois personagens é central no roteiro.
No papel do Rei do Rock, o jovem Austin Butler (de Era Uma Vez Em… Hollywood) brilha intensamente. Apesar de não ser particularmente parecido com Elvis, ele o incorpora, do tom de voz à linguagem corporal. Está incrível, especialmente, nas cenas da fase Las Vegas, em que o cantor começa a perder o controle não apenas sobre sua carreira, mas também sobre si mesmo.
Tom Hanks, como o Coronel, tem uma atuação over, provavelmente a pedido do diretor, que o aproxima de uma figura sobrenatural, satânica até. A canção “Suspicious Minds”, um dos grandes hits do cantor, é usada para falar dessa relação: “Estou preso em uma armadilha/Não consigo sair”, dizem seus versos iniciais.
Teatralidade
Os filmes de Luhrmann não são para qualquer um e Elvis não é exceção. O diretor não abre mão de marcas indeléveis de seu cinema, como a intencional teatralidade presente em toda a sua obra.
Estão lá, também, os cortes frenéticos, os personagens por vezes caricatos, o anacronismo na trilha musical que pontua a narrativa, o excesso visual.
Em seu cinema, forma, afinal, é conteúdo – ele enxerga o mundo como espetáculo. A meu ver, ele acerta ao aliar essa estética toda sua à contextualização histórica, situando a trajetória do cantor no tempo e no espaço. Sem esse cuidado, Elvis resultaria oco.
Um personagem da dimensão de Elvis Presley permite múltiplos olhares e o de Luhrmann, frenético e ruidoso como o próprio cantor foi, o traz para o século 21 com vigor, oferecendo ao público um espetáculo que pode ser imperfeito, porém é, em muitos momentos, arrebatador.
VOCÊ CHEGOU ATÉ AQUI, QUE TAL CONSIDERAR SER NOSSO APOIADOR?
Jornalismo de qualidade tem preço, mas não pode ter limitações. Diferente de outros veículos, nosso conteúdo está disponível para leitura gratuita e sem restrições. Fazemos isso porque acreditamos que a informação deva ser livre.
Para continuar a existir, Escotilha precisa do seu incentivo através de nossa campanha de financiamento via assinatura recorrente. Você pode contribuir a partir de R$ 8,00 mensais. Toda contribuição, grande ou pequena, potencializa e ajuda a manter nosso jornalismo.
Se preferir, faça uma contribuição pontual através de nosso PIX: pix@escotilha.com.br. Você pode fazer uma contribuição de qualquer valor – uma forma rápida e simples de demonstrar seu apoio ao nosso trabalho. Impulsione o trabalho de quem impulsiona a cultura. Muito obrigado.