Em Era uma vez eu, Verônica, a narrativa foge do romance piegas a que somos ensinados a enaltecer desde cedo e mostra que ser mulher e ser livre ainda é uma questão muito mais profunda numa sociedade que tenta encaixá-las em padrões e rótulos o tempo inteiro.
“Era uma vez…”, e assim começa todo e qualquer conto de fadas. A referência no título do longa não é à toa – há uma clara ironia entre os enredos fantasiosos e a narrativa de uma jovem amargurada pelas questões existenciais da vida adulta. Desta vez em específico, o pernambucano Marcelo Gomes, diretor dos também maravilhosos Viajo porque preciso, volto porque te amo (2009) e do recente Joaquim (2017) (confira a nossa resenha), retrata uma personagem feminina forte que não acredita (ou ao menos não quer acreditar) em firulas amorosas.
Verônica, sob uma interpretação magnífica de Hermila Guedes, é uma médica recém-formada que ainda vive com o pai em Recife (W.J. Solha) e acaba de entrar em uma residência médica na área de psiquiatria em um hospital público. A jovem tem tudo para ter um futuro promissor – ama cuidar do pai e dos seus pacientes, além de ter uma paciência infinita quando se trata da abordagem humana. Se Verônica é a mocinha da história, então Gustavo (interpretado por João Miguel Leonelli) é o príncipe encantado. No entanto, aqui também ocorre o inverso do que se esperaria de uma história romântica. Enquanto Gustavo é apaixonado por Verônica e a corteja esperando ter algo mais sério, ela se mostra complacente com o fato de que os dois só têm algo casual.
É neste ponto crucial que a narrativa se constrói. Ao comparar a sua vida com a dos próprios pacientes, Verônica talvez tenha a sensação de que não tem nada pelo que ficar amargurada. Isto se torna óbvio quando a médica recém-formada dá uma carona a uma de suas pacientes que está lutando contra a depressão e que mora em uma periferia da capital pernambucana. Verônica percebe que tem tudo o que qualquer mulher gostaria de ter (ao menos no imaginário da sociedade): uma carreira promissora, um homem que a ama e uma vida confortável. Porém, há algo que lhe escapa: ser dona do seu próprio destino.
O universo construído por Marcelo Gomes, de uma Recife de cultura efervescente é muito bem retratado no filme
Tentada a não decepcionar os planos do pai, Verônica inclusive chega a mentir que iria casar com Gustavo, embora isto definitivamente não estivesse nos planos dela. A cena em que a jovem vai para a cama com um rapaz que acabara de conhecer em um bar após alguns drinques talvez seja a mais desconcertante. Verônica não necessariamente queria sexo casual, mas simplesmente ter a liberdade da escolha. É aí que o papel feminino forte da personagem menos se encaixa com os contos de fada. Outra cena marcante é quando ela se encontra com as amigas e todas começam a contar o que gostariam em um relacionamento e Verônica percebe que é uma reta fora da curva.
A realidade é que o papel de Verônica no filme é uma representação de toda uma juventude que cresceu perdida em meio a tantos modelos e ainda está tentando se encontrar. Longe do romance piegas a que somos ensinados a enaltecer desde cedo, ser mulher e ser livre ainda é uma questão muito mais profunda numa sociedade que tenta encaixá-las em padrões e rótulos o tempo inteiro. O universo construído por Marcelo Gomes, de uma Recife efervescente tanto no seu Carnaval quanto na sua cultura em geral é muito bem retratado, inclusive na cena em que a cantora Karina Buhr performa sua música “Mira Ira”. “Tá tudo padronizado/ no nosso coração/ Nosso jeito de amar, pelo jeito/ não é nosso, não” são as estrofes que delimitam o mote de toda dúvida existencial de Verônica. As amarguras da jovem em transição da sua juventude à vida adulta ensina que nem todo conto de fadas precisa terminar com um “…e viveram felizes para sempre”.
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