Doze anos depois de lançar seu primeiro longa-metragem, o pernambucano Marcelo Gomes volta a uma produção de época com Joaquim, filme de formação sobre o mártir Tiradentes. Obra rara na cinematografia brasileira, faz revisionamento de aspecto importante da história do Brasil, concentrando-se sobre o que precedeu à história da Inconfidência Mineira.
O longa, que concorreu ao Urso de Ouro no Festival de Berlim, ficcionaliza com zelo os momentos anteriores à fracassada insurreição que resultam na morte de Joaquim José da Silva Xavier. Mas é após sua degola e esquartejamento que se inicia o relato. Visando às plateia estrangeiras – certamente ignorantes do mito Tiradentes –, um narrador decapitado fala de sua morte, de como foi traído, enforcado e esquartejado; de como por ser o mais pobre entre os inconfidentes, foi escolhido pela coroa para se tornar exemplo nas Minas Gerais de fins do século XVIII.
A narrativa de Joaquim se interessa, sobretudo, em trilhar os caminhos que levaram o alferes (antiga patente referente a um oficial de baixo escalão), um funcionário do império português, à revolta. É na desmistificação do mártir, na profunda humanização que Marcelo Gomes fomenta no personagem, que o filme se torna grandioso. Porque dentro desse recorte, há muito pouco de heroico.
Esse novo Tiradentes não carrega consigo nada do que vimos nos livros escolares, com aquelas representações cristianizadas, ou mesmo das produções feitas para o cinema e a televisão. Felizmente, não há aquele empolamento tão comum às representações de época. Ao contrário, o filme aposta em um trato mais fiel para tentar se aproximar do que deve ter sido o interior do Brasil ainda antes da proclamação da República. Em outras palavras, é um filme sobre precariedade, sujeira, escravidão, piolhos e ganância.
Joaquim propõe uma conta muito simples para entendermos a Inconfidência e todas as relações políticas e sociais da época: as pessoas querem mais. É interessante observar o que significa para cada personagem os conceitos de liberdade e prosperidade. Pois há o escravo que pede para ser vendido para a própria mulher; outros escravos que fogem para o Quilombo; o Alferes que almeja ser Tenente; o português almofadinha que foge do sertão mineiro para o Rio de Janeiro, onde encontrará um pouco de civilização. Mas é na busca por ouro, desempenhada à exaustão pelo próprio protagonista, onde reside o cerne da questão: a riqueza como salvação.
Direção de fotografia e arte fazem louvável esforço em uma reconstrução de época, acentuada lindamente por atuações preocupadas com os sotaques e modos presentes no Brasil colônia.
Em paralelo, direção de fotografia e arte fazem louvável esforço em uma reconstrução de época, acentuada lindamente por atuações preocupadas com os sotaques e modos presentes no Brasil colônia. Julio Machado, que interpreta Tiradentes, imprime real convicção na construção de seu personagem ora ganancioso, ora imbuído de uma ingênua ideologia. É uma pena que em alguns momentos, outros atores não alcancem a grandeza de sua atuação, criando um certo desequilíbrio que pode retirar o espectador do embevecimento que a obra é capaz de impelir.
Joaquim faz uma real investigação de sotaques e línguas, tentando identificar o surgimento incipiente de um português brasileiro, bem como ouvindo as falas de índios e negros. Vai ainda além em um afã antropológico e expõe poeticamente o nascimento de nosso sincretismo cultural, quando vemos um índio e um escravo negro cantando juntos, cada um em sua língua materna, em uma espécie de mashup pré-indústria musical.
Marcelo Gomes, que já havia se aventurado no cinema de época, mostra que continua na trilha iniciada com o seu primordial Cinema, Aspirinas e Urubus. Tanto lá quanto aqui, o diretor e roteirista propõe olhar para o passado para que entendamos melhor nosso presente. Gomes também continua criando narrativas pulsantes em força e poesia.
ESCOTILHA PRECISA DE AJUDA
Que tal apoiar a Escotilha? Assine nosso financiamento coletivo. Você pode contribuir a partir de R$ 15,00 mensais. Se preferir, pode enviar uma contribuição avulsa por PIX. A chave é pix@escotilha.com.br. Toda contribuição, grande ou pequena, potencializa e ajuda a manter nosso jornalismo.