O grande sucesso do melodrama Milagre na Cela 7 (2019), um dos títulos mais vistos na Netflix durante esta fase de isolamento social, em um mundo ideal deveria estimular a curiosidade do público sobre a cinematografia da Turquia, pouco conhecida por aqui e muito vigorosa. Para quem tem vontade de conhecê-la mais de perto, minha sugestão é o excelente Era uma Vez na Anatólia, sexto longa-metragem do diretor Nuri Bilge Ceylan (de 3 Macacos), vencedor do Grande Prêmio do Júri no Festival de Cannes de 2011 e considerado um dos autores mais interessantes hoje em atividade.
Com seus 150 minutos de duração, o longa-metragem de Ceylan talvez espante quem busca uma narrativa palatável como a de Milagre na Cela 7, que investe muito na chave da emoção, da literalidade: é mais lento, tem uma trama que se desdobra e se revela aos poucos, sem a pressa de fisgar o espectador logo de cara (ao contrário do longa de Mehmet Ada Öztekin), e exige empenho do público. Não explica tudo que se passa na tela. Mas vale muito a pena, em vários sentidos.
Era uma Vez na Anatólia se desenrola, em grande parte, na paisagem semidesértica da Anatólia, na porção asiática da Turquia, fotografada com maestria por Gökhan Tiryaki. Nesse cenário, que sugere desolação em vários sentidos, um grupo de policiais e de agentes da Justiça busca um cadáver enterrado.
Há um assassino confesso (Firat Tanis), mas ele nada tem de ameaçador: seu semblante é trágico, sofredor. A grande pergunta, assim, acaba sendo: como e por que o crime foi cometido?
A busca pelo corpo consome boa parte da primeira metade da narrativa. A caravana de policiais que acompanha o assassino, liderada por um comissário (Yilmaz Erdogan), vai mergulhando em um estado impotência e perplexidade. Não consegue compreender a incapacidade do rapaz de identificar o local onde está enterrado o morto.
Com seus 150 minutos de duração, o longa-metragem de Ceylan talvez espante quem busca uma narrativa palatável como a de Milagre na Cela 7, que investe muito na chave da emoção, da literalidade.
Também participam do grupo o promotor Nusret (Taner Birsel) e o médico legista Cemal (Muhammet Uzuner), cujo ponto de vista parece coincidir com o do diretor – apesar de integrar a comitiva, ele se sente um peixe fora d’água. O tempo dilatado pela incerteza faz com que ele comece a questionar, em silêncio, tudo que ali acontece. E esse sentimento vai, aos poucos, contagiando todos ao redor.
Há, em Era uma Vez na Anatólia, um momento sublime, no qual a inquietação é substituída pela beleza. Durante uma parada em um povoado, o prefeito da localidade oferece à comitiva uma ceia. Depois de uma jornada tão exaustiva e inconclusiva, os homens se veem diante de uma bela, e inesperada, presença feminina: Cemile (Cansu Demirci), filha do anfitrião. Naquele momento, ela encarna a possibilidade de uma interrupção, ainda que fugaz, do clima de tensão, e barbárie, lhes devolvendo um tanto de humanidade. Lágrimas rolam pelo rosto do assassino, imagem que embaralha as noções de certo e errado.
Ceylan exige do espectador o empenho de ir além dos diálogos, que por vezes são verborrágicos e nada dizem, para ler os que os personagens querem dizer com os olhos e preencher lacunas, sobretudo na porção final do longa, quando o médico e a mulher da vítima se comunicam sem palavras na cena da autópsia. É um antídoto contra a obviedade, que talvez seja o maior problema de O Milagre da Cela 7, que cumpre bem a missão de entreter e emocionar, mas não consegue transcender.
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