Em tempos de discussão efervescente sobre a demarcação de terras indígenas no Brasil, que está a poucos passos de ser transferida para responsabilidade do Ministério de Agricultura — uma situação que reflete a maneira catastrófica como a questão é tratada aqui -, o filme de Luiz Bolognesi aborda sobre o tema com potência. O diretor, que já tem uma trajetória respeitável na representação da cultura indígena no audiovisual brasileiro contemporâneo, demonstra como o buraco é mais embaixo: em Ex-Pajé (2018), além do avanço das madeireiras e do agronegócio, o neopentecostalismo evangélico também é outra ameaça à cultura nativa dos indígenas da tribo Paiter Suruí, no norte do país.
Apesar da má circulação nas salas de cinema do país (o filme só chegou a ser exibido em 12 salas por um curto período de tempo, diga-se de passagem), o longa de Bolognesi é de extrema importância. Desde o início, o documentário, que oscila entre a ficção e a representação real, não se preocupa em esconder sua intenção. A frase do antropólogo francês Pierre Clastres é exibida nos primeiros minutos do longa-metragem e diz muito sobre o que ele se trata: “O etnocídio não é a destruição física dos homens, mas de seu modo de vida e pensamento”.
‘Ex-Pajé’ flutua entre a denúncia social de um etnocídio silencioso e filme estético sobre os Paiter Suruí.
O protagonista, o ex-pajé Perpera, é um homem que vive boa parte de sua vida dedicado à igreja do vilarejo onde mora. A catequização dos indígenas, no entanto, é sutil. Em nenhum momento, por exemplo, se vê que eles foram obrigados a fazer parte daquela comunidade neopentecostal. Pelo contrário, todos parecem muito bem acomodados àquela realidade, como se ela já estivesse tão intrínseca à própria identidade dos moradores que não fosse nem algo passível de mudança. Alguns poucos momentos poéticos, no entanto, retratam essa realidade de maneira a denunciar as mudanças: como, por exemplo, quando o índio Perpera está lavando a frente da igreja do vilarejo, e se vê consumido pela escuridão do interior do templo.
Longe de uma dizimação necessariamente física, Ex-Pajé apresenta ao espectador uma reflexão sobre como o modo de vida daquela população foi exterminado, tanto por conta da influência massiva da tecnologia, quanto pela missão quase que jesuítica da intervenção de grupos evangélicos nessas comunidades. A questão vai além de um julgamento moral: afinal, onde foram parar os valores e as crenças que permeavam a cultura daquele povo? Simplesmente desapareceram por conta do desgaste ao tempo, ou pelos agentes externos que os aniquilaram? A resposta fica na ponta da língua para quem assiste.
As imagens construídas em Ex-Pajé são cheias de simbologias: como os closes nas crianças mexendo em smartphones, ou do fogão no meio de uma casa. A tradição e a contemporaneidade se misturam no filme de Bolognesi, e é a lenta e quase imperceptível morte de uma cultura que se sobressai. Apesar de ter momentos no filme que são nitidamente planejados — o que confunde o hibridismo entre documentário e ficção, Ex-Pajé tem o êxito de ser um filme que desdobra a denúncia de maneira estética, sem ser necessariamente explícita. Uma reflexão bastante digna e essencial diante para os tempos que vivemos.
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