Logo no primeiro plano de Explode São Paulo, Gil, de Maria Clara Escobar, exibido na atual edição do Olhar de Cinema, já se anuncia a radicalidade ética e formal que atravessa todo o filme. Uma mulher, sentada no degrau de uma área de serviço externa — esse espaço liminar e simbólico na arquitetura da casa brasileira — hesita entre permanecer ou avançar. O gesto é carregado de tensão e significado. De desconforto.
Gildeane Leonina, ou simplesmente Gil, a protagonista de Explode São Paulo, Gil, é muito mais do que uma empregada doméstica. É periférica, epilética, lésbica, depressiva — identidades que ela mesma articula, logo no início do filme, com força e lucidez. Mas ela sonha ser cantora e, de certa forma, libertar-se dessas amarras identitárias. Tornar-se outra versão de si mesma.
A diretora, que já havia explorado a delicadeza dos vínculos pessoais em Os Dias com Ele (2012), quando confrontou o silêncio do próprio pai, repete aqui o gesto de mergulhar no íntimo para provocar o coletivo. Mas, se naquele filme a busca era por um afeto negado, aqui trata-se de lidar com um afeto assimétrico, enredado nas tramas do trabalho doméstico, da desigualdade social e do racismo estrutural.
Escobar se mostra uma cineasta inquieta, que não se contenta com a distância protetora da câmera. Ela entra em cena, intervém, se emociona. E é justamente essa escolha que confere ao filme sua ambivalência mais produtiva. Explode São Paulo, Gil não quer ser um retrato “limpo” ou idealizado. Ao contrário, abraça o ruído, o descompasso, a fricção. A relação entre patroa e empregada — marcada por carinho, mas também por culpa e privilégio — se transforma em matéria viva para o documentário. Lembra, de certa forma, Santiago de João Moreira Salles.
A performance de Gil é o grande eixo dessa construção. Com inteligência emocional rara, ela alterna silêncios densos e tiradas afiadas, como no momento em que dispara: “Se eu fizer sucesso, quem vai tirar o pó da sua casa? Você mesma, chorando, arrependida de ter me incentivado?”. Em falas como essa, o filme alcança uma potência rara, revelando o abismo que separa o sonho da sobrevivência.
A performance de Gil é o grande eixo dessa construção. Com inteligência emocional rara, ela alterna silêncios densos e tiradas afiadas, como no momento em que dispara: “Se eu fizer sucesso, quem vai tirar o pó da sua casa? Você mesma, chorando, arrependida de ter me incentivado?”.
Ainda que por vezes o excesso de presença da diretora em cena desafie o espaço de Gil, essa tensão acaba sendo incorporada como parte do próprio projeto. A proposta nunca foi a de uma escuta “pura”, mas sim de um embate — entre mundos, vozes, corpos e discursos. Explode São Paulo, Gil não busca consenso, mas sim visibilidade para um conflito que permanece soterrado nas relações sociais brasileiras.
O filme oscila, sim, entre a escuta e a ocupação de cena. Mas essa oscilação é, de certo modo, coerente com a proposta de colocar em xeque os papéis da documentarista e de sua personagem, realidade e ficcionalização. Quem é, afinal, a dona da história? Ao se deixar atravessar por Gil — e por outras mulheres que aparecem como ecos e contrapontos —, Maria Clara Escobar revela não apenas a potência dessas vozes, mas também os próprios limites da mediação artística e política.
Em sua melhor forma, Explode São Paulo, Gil escancara o quanto ainda é difícil, no Brasil, ceder verdadeiramente a voz a quem sempre foi silenciado. E se o filme, em certos momentos, não consegue abrir espaço integral para Gil brilhar, é justamente o brilho dela — espontâneo, irreverente, profundo, dissonante — que acaba transbordando os enquadramentos e deixando sua marca mais indelével.
Filha do filósofo Carlos Henrique Escobar, ligada à tradição do documentário autoral brasileiro e a um cinema de forte carga subjetiva e política, Maria Clara Escobar reafirma sua posição como uma das vozes mais inquietas do audiovisual contemporâneo. Com este filme, ela não entrega respostas fáceis — mas oferece o mais importante: um espaço de confronto, onde a intimidade vira território de disputa e, ao mesmo tempo, de revelação.
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