AHBO tem uma longa trajetória de sucesso com suas produções televisivas, tendo sido a casa de prestigiadas séries como Band of Brothers, Os Sopranos, e mesmo as recentes Game Of Thrones e Westworld. No entanto, a emissora não costuma ter tanto sucesso em suas tentativas de emplacar bons longas originais e Fahrenheit 451, infelizmente, não é exceção.
A mais nova adaptação da obra clássica de Ray Bradbury é estrelada por Michael B. Jordan (de Pantera Negra e Creed), no papel de Guy Montag, e Michael Shannon, como o Capitão Beatty. Um elenco promissor, mas que acaba mal aproveitado em um filme que se preocupa mais em ser uma ação num futuro distópico do que uma alegoria política poderosa.
Primeiramente, não há problema algum em ser uma produção de ação futurista, elas podem ser ótimas, mas nem se o entretenimento por si só fosse o objetivo o longa funcionaria, já que fica tentando ter uma profundidade que não cola. O problema é que, para ser o filme que se propõe a ser, não precisaria utilizar a marca do livro de Bradbury de 1953, um marco da literatura exatamente pelas críticas ao autoritarismo e alienação das massas.
No longa do diretor Ramin Bahrani, a impressão é que, ao tentar atualizar a história para um novo público – por exemplo, incluindo fortemente o conceito de redes sociais, antes inexistentes -, ele se esqueceu de que a tecnologia é um aspecto secundário da trama.
O novo Fahrenheit 451 é a segunda adaptação cinematográfica da história, já que existe um filme lançado em 1966 e dirigido por ninguém menos que François Truffaut e, verdade seja dita, nem ele foi completamente fiel ao livro, tomando liberdades para tornar a história mais palatável ao público. Entretanto, a mensagem principal estava lá.
Resumidamente: em algum momento no futuro, a leitura de livros é proibida, pois eles são considerados perigosos para a sociedade e para as pessoas que os leem, que podem ser levadas à loucura pelo hábito, dizem as autoridades de um regime ditatorial. Isso só é contestado por “rebeldes”, já que a maioria da população vive numa paz induzida pelo ópio de um entretenimento avançado. O corpo de bombeiros não apaga incêndios, mas é responsável por queimar todos os livros encontrados, até que não restem mais obras físicas no mundo.
O protagonista é um desses bombeiros, Guy Montag, que eventualmente começa a questionar a natureza do que faz ao conhecer pessoas que ainda se lembram de como tudo era antes e tentam preservar a cultura e literatura.
No longa do diretor Ramin Bahrani, a impressão é que, ao tentar atualizar a história para um novo público – por exemplo, incluindo fortemente o conceito de redes sociais, antes inexistentes -, ele se esqueceu de que a tecnologia é um aspecto secundário da trama.
Em determinado momento, a personagem de Sofia Boutella explica para Montag como era o passado e por que, atualmente, o conhecimento é tido como um mal para as pessoas, tornando-se o papel do governo evitar que ele se espalhe.
E não é porque o governo é uma ditadura que quer alienar as pessoas do conhecimento e assim evitar a formação de indivíduos pensantes e contestadores. O que é, simplificando bastante, a mensagem de Fahrenheit 451.
Ela conta que, no passado – o qual, dá se a entender, seria o nosso presente -, as empresas de tecnologia começaram a conseguir prever o que as pessoas queriam, percebendo que o ego e a felicidade eram a necessidade da maioria. Essas corporações teriam se unido e formado o Ministério, uma espécie de governo, para dar isso a elas de maneira simples: privando-as de informação e conectando a todos em uma grande rede social que controla a narrativa de tudo, o chamado 9. “O Ministério não fez isso com a gente, nós fizemos a nós mesmos. Nós queríamos assim”.
Poderia até ser uma nova perspectiva a ser explorada, a ignorância opcional como forma de escapar de uma realidade terrível e tudo o mais, mas esse diálogo dura um minuto e o tema nunca mais é trazido à tona.
Voltamos a uma pseudo profundidade que, em momentos, até parece que vai explorar pontos inéditos interessantes, como as camadas do personagem de Michael Shannon, só para acabar voltando atrás no terceiro ato e o utilizando como um vilão clássico maligno.
Fahrenheit 451 falha em ser divertido para uma audiência casual, e falha mais ainda em refazer uma alegoria de 65 anos atrás, que cabe tão bem ao mundo de hoje. Fake news, captação ilegal de dados, controle da narrativa e excesso de informação. Todos temas que poderiam ter sido utilizados, mas parecem ter sido cortados para inserir mais cenas com Michael B. Jordan encarando o fogo como se estivesse tendo visões. Não é terrível, só um tanto frustrante.
Curiosidade: para quem possa não saber, o título se refere à temperatura do fogo ao queimar o papel.
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