Fanny e Alexander, minha indicação de hoje para a quarentena, foi lançado em 1982 e pensado para ser uma espécie de despedida precoce do mestre sueco Ingmar Bergman, então com 64 anos: é, ao mesmo tempo, uma síntese de sua filmografia monumental e um mergulho na subjetividade do artista. Apesar de ter morrido apenas em 2008, ele não voltaria a dirigir longas-metragens para o cinema – apenas peças teatrais e filmes para a televisão.
Vencedor de quatro Oscar em 1983 – melhor filme estrangeiro, fotografia, direção de arte e figurino -, Fanny e Alexander tem a peculiaridade de ser uma superprodução requintada, suntuosa, mas também uma obra intimista, extremamente pessoal. O menino Alexander (Bertil Guve) é alter ego do cineasta: descendente de uma família de artistas de teatro, alegre, barulhenta e muito expressiva, ele vê sua vida se transformar, de uma hora para outra, com a morte do pai.
Filho de um pastor, Bergman foi um artista cuja obra, seja pela atração ou pela repulsa, foi profundamente marcada por sua herança cristã, pelo conjunto de valores a ela atrelada, que acabaram por moldar seu imaginário de artista.
Desolada e perdida com a perda, a mãe do garoto e de sua irmã mais nova, a doce Fanny, se casa um tanto às pressas com um rígido e opressivo pastor luterano, que acaba servindo às crianças como algoz. Um contraponto em forma de padrasto ao ambiente idílico, criativo e livre em que eles viviam antes.
Auobiográfico em certa medida – já que As Melhores Intenções (1991), escrito por Bergman e dirigido por Bille August conta a verdadeira história de seus pais -, Fanny e Alexander é um espetáculo magnífico, em vários sentidos. Um dos melhores filmes já feitos, que discute a superioridade da arte frente à religião, a perda da inocência, uma vez que a história é narrada da perspectiva do pequeno Alexander, e o próprio nascimento do cinema como refúgio para quem sonha – é antológica a cena em que as crianças brincam com uma lanterna mágica.
Imaginário
Filho de um pastor, Bergman foi um artista cuja obra, seja pela atração ou pela repulsa, foi profundamente marcada por sua herança cristã, pelo conjunto de valores a ela atrelada, que acabaram por moldar seu imaginário de artista. Não à toa, um de seus filmes mais lembrados é o emblemático O Sétimo Selo (1956), no qual um cavaleiro medieval (Max Von Sydow, com quem ele faria vários outros longas-metragens e morto recentemente), ao regressar das Cruzadas, trava um embate com a morte em um tabuleiro de xadrez.
Toda a narrativa de O Sétimo Selo é permeada por alusões a ideias de fundo religioso, como o pecado, a culpa e a possibilidade de punição no inferno. O medo, associado à morte, também.
Ao longo de sua longa e profícua carreira, Bergman ganhou o Oscar de melhor filme estrangeiro duas outras vezes, antes de Fanny e Alexander: por Através de um Espelho (1961), no qual a fé se manifesta por meio de um transtorno mental, a esquizofrenia, e A Fonte da Donzela (1960), em que o diretor retrata a Suécia medieval dividida entre o cristianismo e o paganismo.
O conflito de Bergman com figuras de autoridade, como se vê em Fanny e Alexander, também se faz presente um outras de suas obras. Se esses trabalhos expressam o conflito do artista com a instância divina, e com a fé, em Morangos Silvestres (1957), o diretor dialoga com uma outra forma de figura que sobre ele exerce forte ascendência: o pai, que também é uma espécie de projeção do próprio cineasta. O idoso e recluso professor (Victor Sjöström), que revê o passado durante uma viagem para receber um título honorário, é um personagem parecido com o seu pai, mas que não deixa de ser, em certa medida, muito semelhante ao homem que Bergman acredita que seria quando atingisse aquela idade.
ESCOTILHA PRECISA DE AJUDA
Que tal apoiar a Escotilha? Assine nosso financiamento coletivo. Você pode contribuir a partir de R$ 15,00 mensais. Se preferir, pode enviar uma contribuição avulsa por PIX. A chave é pix@escotilha.com.br. Toda contribuição, grande ou pequena, potencializa e ajuda a manter nosso jornalismo.