No cinema contemporâneo, as fronteiras entre o documentário e o cinema narrativo, de ficção, andam cada vez mais borradas. O longa-metragem dinamarquês Flee, ainda sem título em português, mas que, em tradução livre, significa “Fuga”, é um exemplo muito potente desse hibridismo. Por isso, mas não apenas por esse motivo, é uma obra tão significativa.
Flee disputa o Oscar 2022 em três categorias: melhor filme internacional, documentário e animação em longa-metragem. É o primeiro na história a conseguir esse feito. Em um mundo justo, poderia vencer as três estatuetas, porque reúne qualidades para isso. O cineasta Jonas Poher Rasmussen narra a turbulenta jornada de Amin, nome fictício de um refugiado afegão, desde a infância na Cabul dos anos 1980 até a idade adulta em Copenhague, quando ele, agora um doutor, resolve contar a Rasmussen sua verdadeira história.
Ao desembarcar na Dinamarca, no fim da adolescência, sem um passaporte, ele mentiu às autoridades de imigração do país escandinavo por recomendação dos traficantes de pessoas, que conseguiram tirá-lo da Rússia, onde ele e a família se refugiaram, e se esconderam, por vários anos, depois de fugirem do Afeganistão, quando o poder em sua terra natal foi tomado pelo Talibã, no fim da década de 1980. O trato: Amin dizer, ao chegar ao aeroporto de Copenhague, que toda a sua família tinha sido morta, ainda em Cabul.
A saga de Amin torna-se ainda mais complexa porque ele, filho de uma família da classe média afegã, muçulmana e conservadora, é homossexual, informação essencial ao excelente roteiro de Flee, que venceu, entre inúmeros prêmios ao redor do mundo, o Grande Prêmio do Júri do Festival de Sundance (EUA), na competição de documentários.
Essa narrativa, feita em forma de depoimento em flashback ao cineasta, a quem Amin revela toda a verdade, é construída como animação, que em momentos mais dramáticos ganha traços sombrios, expressionistas.
De um lado, acompanhamos a história do protagonista a partir de uma perspectiva cronológica, que em sua porção inicial se confunde com a história mais recente do Afeganistão, desde a ocupação soviética até a ascensão dos talibãs, fomentada pelos Estados Unidos, quando seu pai desaparece e Amin, a mãe, um irmão maior e duas irmãs, também mais velhas do que ele, deixam o país e se refugiam na Moscou pós-fim da União Soviética, de onde tentam por anos escapar com a ajuda do irmão mais velho, que imigrou para a Suécia.
Essa narrativa, feita em forma de depoimento em flashback ao cineasta, a quem Amin revela toda a sua verdade, é construída como animação, que em momentos mais dramáticos ganha traços sombrios, expressionistas. Ela é intercalada por imagens documentais de época, extraída de filmes e noticiários, uma opção interessante, porque nos situa no tempo e no espaço, e nos lembra que estamos assistindo a uma obra não ficcional.
À medida em que fala das transições da infância para a adolescência e, mais tarde, para a idade adulta, Amin também se abre a respeito da descoberta de sua sexualidade – na infância, ainda em Cabul, ele gostava de colocar o vestido da irmã e nutria uma paixão platônica pelo astro de cinema e artes marciais belga Jean-Claude Van Damme. Embora ele tema se assumir para a família, “porque no Afeganistão parecia não existir homossexuais”, esse relato, por vezes marcado por angústia, também é quase sempre lúdico.
Flee é um filme original e arrebatador, por sua pertinência temática e ousadia formal. Tem produção dos atores Riz Ahmed, que tem origem paquistanesa e foi indicado no ano passado ao Oscar de melhor ator por O Som do Silêncio, e Nicolaj Coster-Waldau, o Jaime Lannister da série Game of Thrones, astro dinamarquês.
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