Karoline (Vic Carmen Sonne) vive isolada em uma Copenhague marcada pela instabilidade social do período pós-Primeira Guerra Mundial. Após anos acreditando que seu marido, Peter, havia morrido no conflito, ela se depara com seu retorno inesperado, embora agora marcado por uma deformação física que o torna irreconhecível. Incapaz de aceitar sua presença, ela o expulsa, agravando ainda mais sua situação.
Despejada de seu apartamento devido à falta de recursos financeiros, Karoline encontra refúgio em um quarto degradado, alugado de uma senhoria inflexível. Em meio a essa precariedade, ela descobre estar grávida de uma relação breve e impulsiva, um fato que a faz perder o emprego na fábrica têxtil onde trabalhava. Sem alternativas visíveis, Karoline decide recorrer a um método perigoso para interromper a gravidez, levando uma agulha de tricô até uma casa de banhos na tentativa de provocar um aborto.
A iminência de sua solidão é rompida de forma abrupta quando Dagmar (Trine Dyrholm) intervém, resgatando Karoline de um destino trágico. De forma prática, quase fria, Dagmar lhe oferece instruções precisas: procurar ajuda médica caso o sangramento continue e, quando o bebê nascer, entregá-lo para que ela o encaminhe a uma família adotiva de boas condições. Dagmar exige dinheiro pelo serviço, mas também demonstra uma espécie de cuidado ao oferecer doces de sua loja e acompanhar Karoline até sua casa. Questionada sobre o motivo de sua ajuda, Dagmar responde com uma simplicidade desarmante: “Quem mais o faria?”.
A Garota da Agulha, indicado aos Oscar de melhor filme internacional, é dirigido e coescrito pelo sueco-polonês Magnus von Horn. Embora a narrativa não revele de forma explícita, o longa é inspirado na figura de Dagmar Overbye, uma das mais infames assassinas em série da história do país. Em 1921, Overbye foi condenada por matar nove bebês, sob suspeita de ter cometido até 25 assassinatos. Atuando como cuidadora de crianças, ela recebia bebês de mães que, por diversas razões — filhos fora do casamento, condições financeiras instáveis ou juventude —, não podiam criá-los. Dagmar representava, para essas mulheres, uma solução que se transformava no mais cruel dos desfechos.
A abordagem de von Horn, desenvolvida em parceria com a roteirista dinamarquesa Line Langebek, não centraliza Dagmar como personagem principal, mas utiliza sua história para explorar as condições sociais e econômicas que possibilitaram tais crimes. A trama foca nas mulheres marginalizadas pelo sistema e que, em desespero, encontravam em Dagmar sua única opção. Karoline é uma dessas figuras fictícias que simbolizam as consequências mais sombrias de um contexto estruturalmente opressor.
‘A Garota da Agulha’: reflexões contemporâneas
A Garota da Agulha, que já pode ser visto na plataforma de streaming MUBI, retrata uma Dinamarca em rápida industrialização, onde a modernidade coexiste com profundas desigualdades. Trabalhadores enfrentam condições sub-humanas, veteranos de guerra sobrevivem às margens, e até mesmo os aristocratas são prisioneiros de convenções sociais rígidas. No entanto, são as mulheres e seus filhos que sofrem as consequências mais brutais dessa estrutura. Sem acesso a serviços de saúde, recursos financeiros ou redes de apoio, elas se tornam especialmente vulneráveis.
A Garota da Agulha retrata uma Dinamarca em rápida industrialização, onde a modernidade coexiste com profundas desigualdades.
Apesar de ambientado no início do século XX, o longa de von Horn provoca reflexões contemporâneas ao traçar paralelos entre passado e presente. A estética do filme reflete essa dualidade, unindo referências históricas a elementos modernos. A cinematografia de Michal Dymek utiliza preto e branco de alto contraste para capturar a atmosfera sombria das ruas estreitas, das fábricas fumacentas e dos quartos claustrofóbicos, evocando tanto a fotografia vintage quanto o expressionismo alemão. A trilha sonora, composta por Frederikke Hoffmeier (conhecida como Puce Mary), reforça essa tensão temporal ao combinar dissonâncias eletrônicas e instrumentos clássicos, criando um ambiente sonoro ao mesmo tempo inquietante e atual.
As atuações também são marcantes. Vic Carmen Sonne confere à Karoline uma intensidade imprevisível, oscilando entre vulnerabilidade e explosões emocionais, enquanto Trine Dyrholm, tem uma interpretação multifacetada de Dagmar. Sua personagem transita entre o pragmatismo calculista e uma sugestão de empatia, criando uma figura ao mesmo tempo assustadora e compreensível. O universo de Dagmar é um redemoinho de moralidade distorcida que arrasta Karoline para uma espiral de desespero.
A Garota da Agulha transporta o espectador a um cenário distante no tempo, mas sua trama permanece incrivelmente relevante. Von Horn utiliza a história de Dagmar para evidenciar como a desigualdade pode gerar horrores inimagináveis, reforçando a necessidade de enxergar o passado como um espelho das falhas persistentes na sociedade.
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