Em 1990, Conduzindo Miss Daisy foi indicado a nove Oscars e venceu as estatuetas de melhor maquiagem, roteiro adaptado, atriz (Jessica Tandy) e melhor filme. O curioso é que seu diretor, o cineasta australiano Bruce Beresford, sequer ficou entre os cinco finalistas que disputavam o prêmio de direção, vencido pelo norte-americano Oliver Stone, por seu trabalho em Nascido em 4 de julho. Passados 29 anos, Green Book – O Guia parece repetir uma trajetória semelhante, contando uma história que tem inúmeros traços de comum com a adaptação da peça de Alfred Uhry.
Cotado pela imprensa especializada em cinema norte-americana como um dos favoritos na briga de melhor filme, sendo talvez o único título realmente capaz de tirar a estatueta do mexicano Roma, de Alfonso Cuarón, Green Book – O Guia, não teve seu maestro, o norte-americano Peter Farrelly (das comédias Quem Vai Ficar com Mary? e Débi & Loide) esnobado pela academia, assim como Beresford.
Cuarón, vencedor do Globo de Ouro, do Critics’ Choice e do prêmio do Sindicato dos Diretores, é o franco favorito a ganhar o Oscar pela segunda vez – a primeira foi pela ficção científica Gravidade, em 2014.
O enredo de Green Book se aproxima bastante do de Conduzindo Miss Daisy em muitos aspectos. Ambos transitam entre a comédia e o drama, e se utilizam do emblemático espaço do automóvel, um dos ícones mais potentes da cultura norte-americana, como território de negociação em tempos de tensão e segregação racial nos Estados Unidos. Só que enquanto no longa-metragem de Beresford, a passageira era uma aristocrática idosa cheia de preconceitos (Jessica Tandy), que aprende a depender e acaba por se afeiçoar de seu motorista particular, Hanke (Morgan Freeman), no de Farrely, há uma troca de papéis.
O enredo de Green Book se aproxima bastante do de Conduzindo Miss Daisy em muitos aspectos.
O pianista clássico Don Shirley (Mahershala Ali, de Moonlight – Sob o Luar), afro-americano refinado, com título de doutor, é conduzido por um homem branco, o brucutu desempregado de origem italiana Tony Lip (Viggo Mortensen, de Capitão Fantástico), por uma turnê pelo sul dos Estados Unidos dos anos 1960. A alma do filme está no exercício de tolerância que os dois têm de fazer para se compreenderem e, assim, reduzir o abismo que os separa.
Dramaticamente potente, e com ótimas atuações de todo o elenco, Green Book, no entanto, tem uma visível limitação, também evidente em Miss Daisy: o negro, embora tenha protagonismo, é retratado de forma exótica, como “o outro”. De certa forma, o personagem é privado de uma subjetividade mais complexa, a despeito da grande interpretação de Ali, favorito a levar seu segundo Oscar de coadjuvante – o que é, no mínimo, curioso, uma vez que ele é tão protagonista quanto Mortensen, indicado a melhor ator, em uma estratégia duvidosa que ganha caráter simbólico.
Sim, Green Book é um bom filme, melhor até do que Conduzindo Miss Daisy, mas construído da perspectiva de uma Hollywood branca, ainda que liberal e progressista. É inevitável compará-lo, por exemplo, a outro concorrente a melhor filme, o muito mais autoral, e vigoroso Inflitrado na Klan, de Spike Lee, que pela primeira vez é indicado ao Oscar de melhor direção.
Por Lee ser um cineasta militante, cuja obra é fundamentalmente voltada a narrativas relacionadas à realidade e à história dos afro-americanos, a solidez de seu trabalho evidencia as fragilidades de Green Book na abordagem do tema racismo, apesar de suas boas intenções.
Roma
Parte da crítica não crê que a Academia terá coragem de chegar ao ponto de dar as estatuetas de melhor filme e melhor filme estrangeiro (em língua não inglesa) a Roma, que disputa o prêmio em dez categorias. O argelino Z (de Costa Gavras), o italiano A Vida É Bela (de Roberto Benigni) e.o austríaco Amor (de Michael Haneke) também concorreram, simultaneamente, nas duas categorias, mas, pela primeira vez, é concreta a possibilidade de o longa-metragem de Cuarón, realizado em parceria com o canal de streaming Netflix, vencer em ambas.
Depois ganhar o Leão de Ouro no Festival de Veneza, Roma é uma quase unanimidade – há, contudo, quem o acuse de trazer uma visão burguesa (e conformista), no caso a de Cuarón, um homem branco, da classe média alta mexicana, da relação entre patrões e empregados domésticos nos anos 1970, em uma sociedade estratificada.
A protagonista Cleo (a novata Yalitza Aparicio, indicada a melhor atriz) é alter ego de uma babá que serviu a sua família durante a infância a adolescência do diretor, que já havia abordado esse universo no excelente E sua mãe também (2001), pelo qual foi indicado ao Oscar de melhor roteiro original. Como poderia Cuarón, todavia, ter outro ponto de vista, uma vez que se trata de sua vida, de seu lugar de fala?
Caso a Academia não queira premiar Roma na categoria principal, de melhor filme, Green Book – O Guia surge como uma escolha segura, mas conservadora. Entre os indicados, mais coerente, então, seria dar o prêmio a A Favorita, do grego Yorgos Lanthimos, também indicado em dez categorias e uma obra artisticamente muito superior ao longa de Farrelly. Se levar melhor filme, Roma dá alguma chance ao polonês Guerra Fria, de Pawel Pawlikowski (do estupendo Ida), também indicado a melhor direção, de ganhar como filme estrangeiro.
Falaremos mais sobre o Oscar 2019 em breve.
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