É só você acessar a Netflix que, no caso de um lançamento feito pela própria plataforma de streaming, está lá o trailer em destaque, buscando ser o mais chamativo possível, já rodando automaticamente e, de preferência, contando com um rosto (bem) conhecido entre as imagens. Não raras vezes, você ainda recebe um e-mail e uma notificação dentro da conta na plataforma reforçando o convite para ver o filme. Mais natural impossível. Afinal, a ideia é chamar você para assistir logo.
Atualmente, o mais novo produto da Netflix que atende as observações acima é I am Mother, ficção científica distópica e futurista dirigida por Grant Sputore e com roteiro de Michael Lloyd Green. O fato é que, muitas vezes, existe um contraste entre o apelo chamativo do produto e a efetiva qualidade do que é ofertado. É o que acontece aqui.
O enredo mostra uma menina (Clara Rugaard) criada por um computador humanoide no interior de uma espécie de nave (ou laboratório). A filha só sabe do exterior por meio dos relatos da mãe robô, que “pinta o quadro” de um mundo devastado, desértico, perigoso e marcado pela extinção da espécie humana. Dessa forma, o filme toca levemente no clássico mito da caverna de Platão, segundo o qual a única realidade à qual os prisioneiros de uma caverna tinham acesso eram sombras projetadas na parede. Eles desconheciam que essas sombras eram, na verdade, projeções de estátuas e que, além das estátuas, existia todo um mundo iluminado e real fora da caverna.
O cenário onde o filme acontece remete à Arca de Noé, uma vez que é um espaço para acondicionamento, manipulação e desenvolvimento de embriões humanos que poderão repovoar a Terra devastada.
Nesse contexto, as “sombras”, as projeções do mundo, são os relatos da mãe-máquina. Se esses relatos são reais ou não, é algo que caberá ao espectador descobrir no transcorrer da história. Para quebrar a ideia de que existe apenas uma leitura da realidade é que aparece uma mulher ferida, interpretada por Hilary Swank, que acaba entrando na nave/ unidade/ laboratório.
Em boa parte do tempo, o roteiro, simplista, busca provocar na adolescente protagonista (e nos espectadores, por extensão) a dúvida sobre onde está o bem e onde está o mal: sé é na mãe que sempre cuidou dela ou se é na mulher que acaba de entrar na nave. Uma dicotomia evidente no próprio trailer. Essa dúvida ganha espaço para crescer com facilidade graças às características da personagem principal que, por estar imersa na ingenuidade de quem conhece apenas um mundo limitado, desconhece tanto a alma das pessoas quanto a “alma” das máquinas humanoides. Um detalhe interessante é que existe até certa semelhança física entre as atrizes que interpretam as humanas.
O cenário onde o filme acontece remete à Arca de Noé, uma vez que é um espaço para acondicionamento, manipulação e desenvolvimento de embriões humanos que poderão repovoar a Terra devastada. A unidade é uma espécie de ventre materno gigantesco, cômodo, confortável e, ao mesmo tempo, sufocante, claustrofóbico. Sair dela é enfrentar o mundo, algo que pode ser tão instigante e revelador quanto desgastante e amedrontador. Sim, I am Mother é uma profusão de metáforas sobre o que é ser mãe, o relacionamento entre mães e filhos, a construção de uma família, o processo complexo que é formar seres humanos e, claro, a relação homem/máquina. Gerar seres humanos, no contexto do filme, é uma ação que acontece muito rapidamente: leva apenas algumas horas. O crescer, o formar, o educar é que demora, revelando-se um trabalho árduo, com suas incertezas e resultados não raras vezes inesperados.
Apesar de aparentar ser profundo, este filme que (por sua temática e roteiro) tanto lembra Guerra dos Mundos (2005), quanto Depois da Terra (2013) ou mesmo Máquinas Mortais (2018), não consegue fugir do simplismo e cair na fórmula típica do padrão de produção própria da Netflix: protagonista famoso + roteiro com questões genéricas e abrangentes + metáforas óbvias + transcorrer linear das ações com começo, meio e fim bem definidos (e direito a alguns momentos mais “alternativos”).
Compreensível, já que se trata de um padrão que, por meio de diversos aparelhos eletrônicos, precisa atingir um público diverso que pode estar parado, no conforto de suas casas, ou em deslocamento; um público dos mais variados países e com as mais diferentes visões de mundo e níveis de compreensão. Alguém discorda que Bird Box (2018), por exemplo, segue essa arquitetura? A fórmula básica está lançada e experimentada. Se consegue entreter e aprofundar discussões, aí já é algo bem relativo. I am Mother não consegue.
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