Stanley Cavell (1926-2018), um dos grandes nomes da filosofia contemporânea nos Estados Unidos, professor emérito da Universidade de Harvard, é autor de um livro chamado Pursuit of Happiness – The Hollywood Comedy of Remarriage. Na obra, publicada em 1984, ele escreve sobre um subgênero do cinema norte-americano: as comédias que têm como tema central o recasamento. Nesses filmes, o casal de protagonistas, após a separação e, às vezes, até o divórcio, se reencontra em outro momento de suas vidas, para, mais maduros e experientes, redescobrirem o amor e se unirem novamente.
Entre essas chamadas “comédias do recasamento”, estão clássicos, como Núpcias de Escândalo (1940), filme de George Cukor, estrelado por Katharine Hepburn, Cary Grant e James Stewart, vencedor do Oscar de melhor ator por seu desempenho; e Aconteceu Naquela Noite (1934), de Frank Capra, com Claudette Colbert e Clark Gable, primeiro longa-metragem na história a vencer estatuetas da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas nas cinco categorias principais – filme, direção, roteiro, ator e atriz.
Embora o livro de Cavell aborde filmes produzidos da chamada era clássica do cinema hollywoodiano, o autor escreve que esse subgênero é recorrente. O mais recente exemplo está em cartaz no Brasil antes mesmo de estrear nos Estados Unidos. Trata-se da comédia romântica Ingresso para o Paraíso, do cineasta britânico Ol Parker, de Mamma Mia! Lá Vamos Nós de Novo (2018).
O filme, já um êxito comercial, traz à frente do elenco Julia Roberts e George Clooney, dois dos maiores astros de Hollywood da atualidade, hoje nos seus 50 e 60 anos, respectivamente. Eles vivem um ex-casal, Georgia e David, que viveram apenas cinco anos juntos, se separaram há muito tempo, mas seguem às turras, mesmo à distância. Os dois se reencontram na formatura em Direito da única filha, Lily (Kaitlyn Dever, de Fora de Série), que após a cerimônia parte com a melhor amiga para férias em Bali, na Indonésia.
O que eles não esperam é que, não muito tempo depois, receberão uma ligação da jovem, anunciando ter se apaixonado e estar de casamento marcado com Gede (o francês Maxime Bouttier), fazendeiro de algas balinês. E mais: ela não tem intenções de retornar aos Estados Unidos.
Mesmo, em tese, se odiando, Georgia, que agora namora um piloto de avião mais jovem, Paul (Lucas Bravo, da série Emily in Paris), e David, solteirão convicto, fazem um pacto de impedir o casamento de Lilly e partem para a Indonésia, onde irão conhecer a família do noivo.
Há, em Ingresso para o Paraíso, o olhar pós-colonial dos protagonistas, que desembarcam em Bali trazendo na bagagem, e na cabeça, toda uma carga envergonhada de preconceitos, estereótipos.
É interessante lembrar aqui que o diretor Ol Parker é um dos roteiristas de O Exótico Hotel Marigold, sucesso de bilheteria que também fala sobre choque entre culturas – o filme gira em torno de um grupo de idosos britânicos que, incapazes de viver com suas aposentadorias no Reino Unido, se mudam para a Índia.
Há, em Ingresso para o Paraíso, o olhar pós-colonial dos protagonistas, que desembarcam em Bali trazendo na bagagem, e na cabeça, toda uma carga envergonhada de preconceitos, estereótipos.
Georgia e David acreditam que Lily vai desperdiçar a sua vida, a educação que recebeu, num distante paraíso tropical, menos desenvolvido, longe do que eles julgam ser “a civilização”. Em situações mais ou menos cômicas, que esbarram o tempo todo em uma visão ocidental de bem-estar e sucesso, eles se esforçam para evitar que o casamento se concretize, sem perceber que a força da natureza e da cultura de Bali os reaproxima sem que eles se deem conta disso. Longe de suas vidas, de seus contextos de vida, vem à tona a essência do que são (e foram).
Ainda que previsível, Ingresso para o Paraíso se beneficia do gigantesco carisma de seus protagonistas: Julia Roberts e George Clooney estão em grande forma, irresistíveis. Os diálogos afiados, no melhor estilo screwball, amalucado, das tais comédias que Stanley Cavell analisou em seu livro, oferecem a eles a oportunidade de encarnar versões século 21, repaginadas, de Katharine Hepburn e Cary Grant, por exemplo. É um enorme prazer assisti-los, mesmo que em um filme menor, algo descartável. É um recasamento de milhões.
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