Há 14 anos, quando foi lançado, Identidade Bourne (2002), iniciava inesperada, e possivelmente não planejada, transformação nos paradigmas de filmes de ação e espionagem, gênero que sempre teve a franquia 007 como um de seus carros-chefe. O filme do mediano Doug Liman, inspirado na série de romances do escritor norte-americano Robert Ludlum (1927-2001), trazia como protagonista Jason Bourne, vivido por Matt Damon (de Perdido em Marte), um personagem profundamente distinto de James Bond.
Desmemoriado, guiado pela angústia de não saber quem é e, portanto, muito vulnerável, Bourne colocou em xeque a infalibilidade charmosa, sedutora e algo misógina representada por Bond ao longo de décadas. Tanto que, quando o ator Daniel Craig assumiu o papel do agente 007 em 2006, em Cassino Royale, o espião já não era mais o mesmo. Parecia ter incorporado traços de Bourne em seu DNA.
Mas a série de filmes baseada nos livros de Ludlum só decolou de verdade quando o cineasta britânico Paul Greengrass (indicado ao Oscar por Voo United 93) assumiu a direção das duas sequências: A Supremacia Bourne (2004) e O Ultimato Bourne (2007) trouxeram à franquia, além de impecável qualidades técnicas, muito vigor narrativo. No mundo instável e sombrio do pós-11 de Setembro de 2001, Bourne tornou-se um personagem emblemático, transitando entre impermanências, decorrentes tanto do quadro geopolítico quanto da desconexão do protagonista com sua própria história.
Jason Bourne, em cartaz desde a semana passada, marca o retorno de Greengrass e de Damon à série, após o irregular O Legado Bourne (2012), estrelado por Jeremy Renner, que não vive o papel do espião desmemoriado, mas de um agente ligado ao mesmo universo ficcional. Damon, que não tinha planos de retomar o papel, só aceitou o desafio porque Greengrass também topou encarar o desafio. Valeu a pena aguardar oito anos por esse reencontro, ainda que Jason Bourne seja menos intenso do que os outros longas dirigidos pelo britânico.
O mais interessante em Jason Bourne, em vez das sequências de ação, sempre espetaculares nos episódios anteriores, é o arco dramático percorrido pelo personagem, que confronta perdas.
Essa menor intensidade, talvez, esteja relacionada ao caráter um pouco mais intimista do enredo, que lida justamente com o passado no protagonista, que neste episódio se vê, finalmente, às voltas com quem de fato ele é, e com a sucessão de fatos dolorosos, envolvendo sua família, que o conduziram ao momento em que se encontra, caçado pela organização que por tanto tempo serviu.
O mais interessante em Jason Bourne, em vez das sequências de ação, sempre espetaculares nos episódios anteriores, é o arco dramático percorrido pelo personagem, que confronta perdas. A franquia aprofunda ainda mais a opção por dar-lhe contornos heroicos problematizados, fraturas emocionais.
O espião, mais preocupado em saber como se tornou o que é do que, propriamente, em salvar o mundo, se vê às voltas com inimigos que poder estar, em tese, do seu lado. Ele é o tempo todo alvo de vários algozes, inclusive da própria CIA, que o vê como ameaça, na medida em que se aproxima da verdade sobre sua vida.
Essa ambiguidade torna o filme bem mais instigante – mesmo que o longa continue repleto de cenas de ação, ambientadas em diversos cantos do mundo, algo recorrente em filmes de espionagem, ainda mais em tempos globalizados.
Ponto também é o elenco de apoio. Tommy Lee Jones (de O Fugitivo), como um inescrupuloso chefe da inteligência que deseja a todo custo se livrar de Bourne, e a sueca Alicia Vikander (vencedora do Oscar de coadjuvante neste ano por A Garota Dinamarquesa), no papel de uma enigmática agente da CIA, no limite entre o heroísmo e a vilania, ajudam o filme a tornar-se mais interessante, ainda que inferior A Supremacia Bourne (2004) e O Ultimato Bourne (2007).
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