O longa-metragem Jogos Vorazes – A Esperança – Parte Final é um filme perturbador. E não no melhor sentido que o adjetivo pode atribuir a uma obra que se pretende minimamente artística. O último episódio da saga distópica baseada na série de romances, todos best sellers, da escritora norte-americana Suzanne Collins arremata sem brilho o que, no primeiro e no segundo filmes, até parecia promissor, instigante. Esfacela-se pela acelerada perda de tensão dramática na trama, pelo excesso de cenas de ação vazias e, sobretudo, pelo esvaziamento dos personagens, que se diluem de tal forma que, no fim das contas, se transformam em pouco mais do que avatares sem alma sob a direção pouco inspirada de Francis Lawrence.
Todas essas perdas se agravam ainda mais quando se vê na tela um elenco tão espetacular, que inclui, além da protagonista Jennifer Lawrence, atores de primeira linha, como Julianne Moore, Donald Sutherland, Woody Harrelson e o saudoso Phillip Seymour Hoffman (morto em 2014), em papeis que, ao longo da quadrilogia, foram se tornando mais e mais inconsistentes.
A saga adolescente tem uma premissa muito interessante: em um país chamado Panem, se promove, todos os anos, um jogo no qual jovens casais de cada um de seus 12 distritos se lançam em uma batalha na qual apenas um indivíduo sobrevive. Ao se oferecer como “tributo” para poupar a irmã mais nova, Prim, que havia sido sorteada em seu primeiro ano na disputa, a heroína Katniss Everdreen (Jennifer Lawrence, vencedora do Oscar de melhor atriz por O Lado Bom da Vida) torna-se a representante do miserável Distrito 12, ao lado de Peeta Mellark (Josh Hutcherson, de Minhas Mães e Meu Pai).
Esfacela-se pela acelerada perda de tensão dramática na trama, pelo excesso de cenas de ação vazias e, sobretudo, pelo esvaziamento dos personagens…
Descendente direto de tramas distópicas, como o romance e o filme 1984 (1984), Gattaca – Experiência Genética(1997) e Filhos da Esperança (2006), Jogos Vorazes parecia ver, nos seus dois primeiros episódios, o futuro como uma instância temporal sombria, na qual a condição humana, após sucessivos erros, chega mais uma vez ao limite da barbárie. E a competição que dá nome à série simboliza essa perda de referências, essa institucionalização da crueldade e da violência como algo inerente à sociedade. E sob a forma de espetáculo para as massas – os tais jogos são transmitidos ao vivo como um reality show. Qualquer semelhança com os tempos atuais, portanto, não é mera coincidência.
Acontece que a partir do terceiro filme, Jogos Vorazes – A Esperança – Parte 1, a trama se afasta do jogo, e se torna, de forma atabalhoada, pelo menos nos filmes, uma desinteressante versão da Jornada do Herói, certamente inspirada pelo paradigma do monomito de Joseph Campbell, na qual Katniss tem a missão de libertar Panem do jugo de seu governo despótico, encarnado pelo ditador Snow (Donald Sutherland), que faz uso dos jogos uma válvula escapista para as tensões geradas pela estratificação social representada pelos diferentes distritos, que nada mais são do que uma materialização do ideal maquiavélico que prega a divisão como forma mais eficaz de dominação.
A ótima Jennifer Lawrence, que ao longo da série se tornou uma das estrelas mais bem pagas do cinema mundial, consegue dar a complexidade que o personagem exige: é ao mesmo tempo forte, destemida, independente e hesitante, sensível. Continua muito interessante, até o fim, sua relação com Peeta, que subverte o modelo tradicional, o colocando na posição da “mocinha em perigo”, tão antiga quanto o cinema, e hoje redutora demais. Esse é ainda, mesmo neste fraco último episódio, um ponto forte da história: o garoto tem o direito de reclamar para si a posição de elo mais frágil, embora também seja corajoso à sua própria maneira.
Pena que ao reduzir a trama, que se inicia tão bem, a um enredo (ruim) de videogame, abrindo mão das texturas psicológicas e políticas, bem mais evidentes no início da série, Jogos Vorazes – A Esperança – Parte Final resulte em um espetáculo mortalmente entediante e previsível.
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