Está nos olhos e na voz de Fred Hampton, esplendidamente interpretado pelo ator britânico de origem ugandense Daniel Kaluuya (de Corra!), a alma do arrebatador drama Judas e o Messias Negro, indicado a seis Oscar, entre eles o de melhor filme. Embora não seja uma cinebiografia, e Hampton nem seja, exatamente, o seu protagonista, o ativista, presidente dos Panteras Negras, partido mais emblemático do movimento negro nos Estados Unidos, reverbera e se espalha por toda a narrativa, como se ele estivesse presente em cada cena.
O messias do título do longa-metragem, Hampton tinha apenas 21 anos à época, fim dos anos 60, mas com o seu carisma extraordinário, retratado com maestria por Kaluuya (favorito ao Oscar de melhor ator coadjuvante), ele tinha à sua disposição uma pequena legião de seguidores fiéis, dispostos a dar a vida ao movimento. Seu intento era fazer com que esse exército crescesse, contando não apenas com “soldados” negros. Ele acreditava; em sua cruzada messiânica, que a causa libertária que defendia era inclusiva e dizia respeito a todos, brancos, latinos. Por isso, era visto pelo status quo como uma ameaça, um inimigo de Estado
Na visão do cineasta Shaka King, que assina Judas e o Messias Negro, o poder de Hampton estava, sobretudo, em sua oratória, na capacidade de mobilizar por meio dos seus discursos inflamados e emocionantes. Eles são um dos pontos altos do filme. E é justamente essa qualidade messiânica de Hampton que pede, de forma quase paradigmática, uma figura antagônica, um Judas, encarnada por Bill O’Neal (LaKeith Stanfield, também indicado à estatueta de coadjuvante). Ele é o militante hesitante, e invejoso do brilho de seu companheiro, que decide trai-lo, vendendo-se ao FBI, cuja missão é desbaratar os Panteras Negras.
Na visão do cineasta Shaka King, que assina Judas e o Messias Negro, o poder de Hampton estava, sobretudo, em sua oratória, na capacidade de mobilizar por meio dos seus discursos inflamados e emocionantes.
Distanciando-se de uma visão maniqueísta, e simplificadora, a relação entre Hampton e O’Neal não é construída pela narrativa como antagônica, mas dissonante, tensa. Eles são aliados que discordam e, muito jovens, veem questões políticas e pessoais se misturarem. Ponto para o filme. O inimigo, segundo o filme, é o establishment, o Estado, e não um indivíduo.
O filme inicia e termina com Bill O’Neal. Veem-se na tela cenas do personagem no documentário Eyes on the Prize e dele já na pele de LaKeith Stanfield, que também está excelente no papel. Portanto, não é um mistério para o espectador que ele se infiltrou nos Panteras em troca do FBI retirar as acusações de roubo. Mas a “verdade” do filme não está aí, e sim na complexidade da relação que se estabelece entre ele e Hampton.
O’Neal se transforma à medida em que se aproxima de Fred Hampton e busca pela própria identidade. Esse processo complexo, que o retira da condição de um antagonista, é outro ponto alto do filme. Aqui, o personagem não é somente alguém que traiu um movimento em uma ação que provocou a morte de seu líder. O roteiro, também indicado ao Oscar, está interessado em outra narrativa, mais subjetiva. Como ele, um sujeito sem engajamento na causa do partido, e que aceita ser infiltrado, enfrenta um conflito interno ao se descobrir tocado pelo ideário do movimento. Essa dicotomia é interessantíssima.
A fotografia de Sean Bobbit, também nomeada ao prêmio da Academia, ao mesmo tempo em que nos oferece cores e texturas do cinema realista norte-americano do fim dos anos 60, início dos 70, é também muito sensual, epidérmica, e nos coloca rente aos personagens e suas peles negras, em planos fechados e close-ups. A trilha sonora de Craig Herris e Mark Isham, marcada por forte base percussiva com sonoridades africanas, contribui para a intensidade narrativa, que é de tirar o fôlego.
ESCOTILHA PRECISA DE AJUDA
Que tal apoiar a Escotilha? Assine nosso financiamento coletivo. Você pode contribuir a partir de R$ 15,00 mensais. Se preferir, pode enviar uma contribuição avulsa por PIX. A chave é pix@escotilha.com.br. Toda contribuição, grande ou pequena, potencializa e ajuda a manter nosso jornalismo.