A história do cinema hollywoodiano está repleta de filmes sobre esportes e atletas, quase sempre para contar histórias de superação. Em uma sociedade que valoriza muito o triunfo do indivíduo frente às adversidades, como a norte-americana, o paradigma da Jornada do Herói, ou monomito, é uma estrutura de storytelling das mais recorrentes na construção de roteiros, que cumprem o papel de inspirar, dando exemplos de esforço e determinação. King Richard: Criando Campeãs, já em cartaz no serviço de streaming HBO Max, não escapa a essa regra, mas dela se serve de maneira menos previsível e mais interessante.
Indicado a seis Oscar (melhor filme, ator, atriz coadjuvante, roteiro original, edição e canção), o longa-metragem de Reinaldo Marcus Green retrata a infância e a adolescência das tenistas norte-americanas Venus e Serena Williams, primeiras mulheres pretas a ocupar o topo do ranking mundial do esporte, a partir da relação das duas atletas com seu pai, Richard Williams.
Na pele de Will Smith, favorito ao Oscar de melhor ator, Richard é apresentado pelo eficiente roteiro do filme como o grande responsável pelo extraordinário sucesso das filhas em uma modalidade muito pouco praticada por negros nos Estados Unidos e por muitos vista como elitista. Obstinado, à beira da obsessão, o patriarca dos Williams foi o primeiro técnico das duas meninas, que muito cedo demonstraram aptidão e talento para o esporte, e para elas traçou um rígido itinerário rumo à glória.
O trunfo maior do roteiro de Zach Baylin é não ter medo de construir Richard como um sujeito imperfeito, repleto de falhas, a despeito de ser um pai apaixonado pelas filhas.
O trunfo maior do roteiro de Zach Baylin é não ter medo de construir Richard, o protagonista que dá título ao filme, como um sujeito imperfeito, repleto de falhas, a despeito de ser um pai apaixonado pelas filhas. Ele não é, de forma alguma, um herói unidimensional, o que proporciona a Will Smith um papel complexo, que desafia seus habituais carisma e simpatia, marcas registradas de sua persona cinematográfica, por vezes inofensiva.
De classe média baixa, Richard, apesar de bom pai para suas cinco filhas, tem um passado obscuro, que aos poucos se revela na trama. É um homem rígido, disciplinador e, por vezes, autoritário, apesar de também afetuoso. Teme que as filhas caiam na marginalidade, realidade que cerca sua família na vizinhança de Compton, na Grande Los Angeles, dominada por gangues nas décadas de 1980 e 90.
O grande ponto de equilíbrio em sua vida é sua esposa Oracene (a excelente Aunjenue Ellis, indicada ao Oscar de coadjuvante), mulher firme e amorosa que também foi fundamental no êxito de Venus (Saniyya Sidney) e Serena (Demi Singleton). Em muitos momentos, ela é a voz da razão, da sensatez, que enfrenta a obstinação por vezes insana de Richard.
Embora King Richard: Criando Campeãs não escape de alguns clichês do “filme de esporte e superação”, King Richard: Criando Campeãs tem qualidade inegáveis que o libertam das convenções de seu subgênero. A maior delas, que considero determinante, é que o filme traz uma visão interna do cotidiano de uma família da classe trabalhadora negra que vive em um gueto violento numa grande metrópole, como Los Angeles. Faz muita diferença o diretor Reinaldo Marcus Green (de Monstros e Homens) ser afrodescendente e ter uma obra voltada a temas relacionados à comunidade black.
Com um bom roteiro nas mãos, Green impregna o filme com muita autenticidade em vários aspectos, da dinâmica familiar, doméstica, aos diálogos e falas, passando pela direção de arte e figurinos. Tudo é muito verossímil, não exótico.
É interessantíssima a forma como os Williams, à medida em que surgem oportunidades para Venus fora da comunidade onde vivem, começam a enfrentar o mundo dos brancos com suas convenções e preconceitos. Por meio do inconformismo de Richard diante das regras do mundo do tênis, o filme também discute choque cultural e racismo.
Do ponto de vista narrativo, King Richard: Criando Campeãs é muito envolvente, como convém a um filme sobre esportes. A ótima edição, também indicada ao Oscar, se encarrega de nos colocar na posição de torcedores – é eletrizante a longa sequência da primeira partida profissional de Venus contra a espanhola Arantxa Sánchez Vicario, então número 1 do ranking mundial, em 1994.
Por não focar na carreira profissional das irmãs Williams, e, sim, nos anos que a antecedem, King Richard: Criando Campeãs não é sobre a Jornada do Herói das duas atletas, e sim a respeito da de seu pai, personagem defendido com bravura por Will Smith, um astro que, devido a escolhas nem sempre acertadas em sua carreira, foi do céu ao inferno, se reinvente e agora faz um grande retorno, que já lhe deu o Globo de Ouro (drama) e o prêmio do National Board of Review, entre outros.
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