O visual, no cinema do diretor norte-americano Tim Burton, costuma, em seus melhores filmes, não apenas potencializar as tramas que narra, mas delas ser parte indissociável, orgânica. Quando ele acerta, é, literalmente, um criador de mundos extraordinários, como se pode comprovar em, por exemplo, Edward Mãos-de-Tesoura (1990).
Já quando erra a mão, direção de arte, cenografia, figurinos, maquiagem e outros traços estéticos e técnicos se impõem de forma maneirista, não apenas soterrando as narrativas, mas levantando a suspeita de que Burton se repete, e aproxima-se, por vezes, de um simulacro de si mesmo. A forma se sobrepõe perigosamente ao conteúdo e a receita desanda.
Em O Lar das Crianças Peculiares, que hoje estreia nos cinemas brasileiros, Burton mais acerta do que erra, fazendo um filme visualmente hipnótico em alguns momentos, mas que também derrapa em uma história que não flui sem solavancos. O roteiro, inspirado no livro inaugural da série infantojuvenil de best-sellers fantásticos de Ransom Riggs, parece confiar demais no apelo excêntrico dos personagens, na exuberância das dimensões imaginárias que leva à tela, e de menos no enredo que está contando, não tão envolvente quanto promete, ou poderia de fato ser. Ainda assim, pode se dizer que é um bom filme.
Asa Butterfield, jovem ator revelado pelo belíssimo A Invenção de Hugo Cabret (de Martin Scorsese), vive o protagonista de O Lar das Crianças Peculiares, Jake, um jovem que equilibra seu tempo entre a escola e o emprego em um supermercado na Flórida. Meio tímido, e introspectivo, ele não se dá conta que há algo especial em sua pessoa até que o avô, Abraham Portman (Terence Stamp, de Teorema), é vítima de um ataque estranhíssimo.
Do velho senhor, sabe-se apenas que nasceu na Alemanha (tudo leva a crer que tenha origem judaica) e foi criado em um orfanato no interior do País de Gales, na Grã-Bretanha, do qual saiu para ingressar nas Forças Armadas durante a Segunda Guerra Mundial. A família sabe muito pouco sobre a instituição, a não ser que era administrada por uma certa senhorita Peregrine (a espetacular Eva Green, de Os Sonhadores).
Como há a expectativa de que o filme dê origem a uma franquia, Burton contém-se: não há no filme, de forma tão evidente, referências estéticas ao Expressionismo Alemão, ao universo gótico, referências constantes na sua obra…
Na busca por respostas sobre o que teria ocorrido com Abbe, apelido do avô, Jake e seu pai, Frank (Chris O’Dowd, de Operação Madrinha de Casamento), vão a Gales, e lá descobrem que o tal lar não é (ou era) um mero abrigo para crianças órfãs. Miss Peregrine ocupava-se de meninos e meninas com poderes especiais e todos hoje se encontram presos em uma espécie de dobra no tempo, no ano de 1943. Há semelhanças entre esse universo e o das HQs e filmes X-Men, em uma espécie de cruzamento com o de Harry Potter. Faz sentido que Burton esteja na condução do filme: sua filmografia é habitada por seres marginais, excêntricos.
Como há a expectativa de que o filme dê origem a uma franquia, Burton contém-se: não há no filme, de forma tão explícita, referências estéticas ao Expressionismo Alemão, ao universo gótico, quase obrigatórias na sua obra, mas o cineasta brinca com traços recorrentes no seu cinema muito particular. Vão desde a existência de um mundo paralelo, fantástico, que se contrapõe à realidade, até as pequenas monstruosidades que costumam povoar sua obra, que flerta, mas nunca adere completamente ao terror, por também abraçar um encantamento quase juvenil, outra característica fundamental de seus filmes
Ao mesmo tempo belo e um pouco frustrante, porque não consegue manter o ritmo, e por fim fazer decolar sua história, O Lar das Crianças Peculiares proporciona muitos deleites, mas não é um Burton de primeira linha.
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