Há dois filmes no tocante, ainda que irregular, Lion: Uma Jornada para Casa, longa-metragem do australiano Garth Davis que estreia hoje nos cinemas brasileiros. O primeiro deles conta, recorrendo a uma estilística próxima a do neorrealismo italiano, como o protagonista, o indiano Saroo (Sunny Pawar), ainda na infância, encontra seu triste e algo trágico destino. Esse prólogo estendido justifica a indicação do jovem cineasta ao prêmio do Sindicato dos Diretores, perdido para Damien Chazelle, de La La Land. É hipnótico.
Pobre, filho de Kamla (Pryanka Bose), uma mulher que sobrevive carregando pedras numa localidade remota do interior da Índia (não saber qual é a cidade faz parte do grande mistério do filme), Saroo ajuda a família como pode: cuida da irmã menor, Shakila (Khushi Solanki), e vê o irmão mais velho, Guddu (Abhishek Bharate), como uma espécie de ídolo. Juntos, os dois meninos percorrem estações ferroviárias e trens que passam pela região em busca de objetos perdidos que possam transformar em dinheiro.
Um noite, quando a mãe está fora, trabalhando, e os meninos deveriam ficar em casa com a caçula, Guddu decide tentar a sorte em vagões nos trilhos da cidade. Saroo, ansioso por participar da aventura, insiste para ir junto. Por uma série de circunstâncias que não cabe aqui descrever, para não estragar a experiência do espectador, ele acaba se perdendo.
Nessa primeira parte de Lion, indicado a seis Oscars, incluindo o de melhor filme, Davis demonstra total controle da narrativa. Ele nos coloca ao lado de Saroo em sua jornada, que o conduz cada vez mais longe de casa. O filme transborda autenticidade.
A fotografia de Greig David (de Rogue One: Uma história de Star Wars), também indicado ao Oscar e vencedor do prêmio do Sindicato dos Diretores de Fotografia, batendo o favorito La La Land, é fundamental em Lion. Em vez de se apropriar da Índia como um cenário exótico, ele consegue traduzir em imagens toda a perplexidade e desespero de Saroo, que mergulha aos poucos na orfandade, percorrendo a geografia complexa de seu país até chegar à Austrália, onde é adotado por um casal, John (David Wanham, da trilogia O Senhor dos Anéis) e Sue (Nicole Kidman, indicada ao Oscar de melhor atriz coadjuvante por seu tocante desempenho).
A fotografia de Greig David (de Rogue One: Uma História de Star Wars), também indicado ao Oscar e vencedor do prêmio do Sindicato dos Diretores de Fotografia, batendo o favorito La La Land, é fundamental em Lion.
O segundo filme em Lion é mais problemático e irregular. Tem início quando Saroo ressurge adulto, na pele de Dev Patel, ator britânico de origem indiana revelado pelo premiado Quem Quer Ser Milionário?, de Danny Boyle. Embora sua atuação, também indicada ao Oscar, na categoria de melhor coadjuvante, seja notável, e bastante complexa, a direção de Davis perde um tanto o vigor, por de alguma forma se tornar previsível. Saroo, após conhecer a namorada Lucy (Rooney Mara, de Carol), que lhe serve como uma espécie de mentora, inicia uma longa busca por sua identidade perdida, e pela família biológica que nunca mais viu desde aquela noite. Acontece que ele não tem a menor ideia de qual seja sua cidade natal, ou do nome da mãe e sobrenome de família.
O desempenho matizado de Patel, que lhe rendeu o Bafta (Oscar britânico) de melhor coadjuvante, consegue fazer com que o Saroo adulto não seja apenas uma vítima do destino: o personagem ganha complexidade, tridimensionalidade, embora seja sempre empático. Outra peça chave é Sue, defendida com bravura por Nicole Kidman, que vai além do protocolar papel da mãe coragem. É uma mulher sensível, ao mesmo tempo forte e vulnerável – a cena em que explica por que resolve adotar meninos indianos, apesar de poder ter filhos naturais, é um dos pontos altos do longa.
Baseado no livro autobiográfico de Saroo Bierley, Uma Jornada para Casa, recém-publicado no Brasil pela editora Record, Lion está no limite do melodrama em sua segunda metade, resvalando até no excesso em seu trecho final, mas por conta do vigor de sua parte inicial, da direção sempre potente de Davis e das ótimas atuações do elenco, o filme se sustenta e nos presenteia com uma história difícil de esquecer.
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