A semelhança entre a atriz francesa Chiara Mastroianni e seu pai, o lendário ator italiano Marcello Mastroianni, serve como ponto de partida para Marcello Mio, um filme intrigante que flerta com o metacinema enquanto examina questões de identidade, legado e a relação entre vida pessoal e arte. Dirigido por Christophe Honoré (de Canções de Amor e As Bem-Amadas), a obra propõe um diálogo intenso entre a biografia e a ficção, explorando tanto o peso cultural quanto as implicações emocionais de ser filha de dois ícones do cinema europeu, Marcello e Catherine Deneuve.
Chiara interpreta uma versão fictícia de si mesma, uma atriz francesa que, em um gesto tanto performativo quanto existencial, decide “se tornar” o pai. Essa transformação é catalisada por eventos que misturam humor e estranheza, como a sequência inicial em que, durante uma sessão de fotos em Paris, Chiara posa como Anita Ekberg na icônica cena da Fontana di Trevi de La Dolce Vita.
Ao se deparar com o reflexo de Marcello no espelho, ela inicia uma jornada de autodescoberta que transita entre o absurdo e o poético. A partir desse momento, Chiara adota um visual inspirado no pai em 8½, com terno preto, óculos de armação grossa e chapéu, e insiste que todos a chamem de “Marcello”. Essa decisão desconcerta amigos, familiares e ex-companheiros, incluindo Catherine Deneuve, Melvil Poupaud e Benjamin Biolay, enquanto provoca reflexões sobre identidade, memória e os limites entre o real e o imaginário.
‘Marcello Mio’: dimensão psicanalítica
O filme explora de maneira inteligente as tensões entre o legado familiar e a individualidade. Chiara, longe de ser apenas uma “filha de celebridades”, possui uma carreira consolidada que inclui colaborações com cineastas de prestígio como Manoel de Oliveira e Claire Denis. No entanto, Honoré utiliza o peso simbólico da figura de Marcello para abordar como a imagem de um pai ou mãe célebre pode moldar, limitar ou enriquecer a percepção que uma pessoa tem de si mesma. Essa dimensão psicanalítica é conduzida com humor e autocrítica, mas sem abrir mão de um olhar sensível e até melancólico.
O humor do filme é sofisticado e muitas vezes autorreferencial. Catherine Deneuve, conhecida por sua capacidade de brincar com sua imagem pública, entrega momentos de grande leveza e ironia, como quando comenta que “as pessoas são simpáticas” ao ser recebida calorosamente em seu antigo apartamento, apenas para ouvir Chiara responder: “Elas são quando você é Catherine Deneuve.”
Embora Marcello Mio seja indiscutivelmente ambicioso e inventivo, ele também é uma obra que exige um público específico.
Essa dinâmica entre mãe e filha, ao mesmo tempo afetuosa e crítica, é um dos motores emocionais da narrativa, reforçando os temas de legado e interdependência que atravessam o filme.
Ao mesmo tempo, Marcello Mio vai além da simples homenagem. A decisão de Chiara de “encarnar” o pai é apresentada como uma forma de questionar os papéis de gênero e os limites da performance.
Ao vestir-se como Marcello e assumir sua identidade masculina, a protagonista subverte expectativas e sugere que o legado do pai não é apenas um peso, mas também um espaço de criação e liberdade. Essa abordagem se alinha aos temas recorrentes de Honoré, como a fluidez de gênero e a complexidade do desejo, que são aqui explorados com delicadeza e irreverência.
O filme adota uma estrutura narrativa fragmentada, com episódios que incluem momentos surreais, como Chiara cantando em um show de Biolay enquanto encarna Marcello, e cenas mais introspectivas, como seu encontro com um soldado britânico melancólico, interpretado por Hugh Skinner.
A viagem à Itália culmina em uma participação no programa de televisão A Ruota Libera, onde sua alegação de ser “o verdadeiro Marcello” é desafiada por figuras reais como Francesca Fialdini e Stefania Sandrelli, adicionando mais uma camada de metalinguagem à trama. Esses momentos reafirmam a habilidade de Honoré em equilibrar leveza e profundidade, mesmo que, em alguns trechos, a narrativa se perca em sua própria exuberância.
As performances do elenco são um dos grandes trunfos do filme. Chiara Mastroianni entrega uma atuação cheia de nuances, alternando vulnerabilidade e carisma, e consegue evocar o magnetismo do pai sem abrir mão de sua própria identidade. Catherine Deneuve, por sua vez, traz uma presença magnética, especialmente em uma cena onde canta uma música composta por Alex Beaupain, que funciona como um lamento sobre sua relação com Marcello. Fabrice Luchini, interpretando uma versão exagerada de si mesmo, adiciona um toque cômico que enriquece o tom multifacetado da narrativa.
Embora Marcello Mio seja indiscutivelmente ambicioso e inventivo, ele também é uma obra que exige um público específico. Seu apelo depende do interesse do espectador por referências à história do cinema europeu e pela dinastia Mastroianni-Deneuve. Para aqueles que não compartilham dessa fascinação, o filme pode parecer excessivamente hermético ou autoindulgente. Ainda assim, para os admiradores de Christophe Honoré e para os cinéfilos em geral, o filme representa uma rica reflexão sobre identidade, memória e a natureza do mito. Mesmo com suas imperfeições, Marcello Mio consegue capturar a complexidade de seu tema central, oferecendo uma experiência tanto intelectual quanto emocional.
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