Há filmes e cineastas que não sobrevivem tão bem à ação do tempo. Ficam circunscritos à época em que foram realizados, não por serem exatamente datados, no sentido de hoje estarem ultrapassados. Por conta do intenso diálogo que mantém com seus respectivos tempos, seja por conta da estética ou do tema que abordam, acabam, de certa forma, ficando encapsulados.
No texto de hoje, falarei da década de 1980, à qual cheguei com 15 anos e da qual saí com 25 – um período fundamental de formação, portanto. Guardo em minha memória fílmica dessa época, por exemplo, a obra do diretor francês Jean Jacques Beineix, como Diva: Paixão Perigosa (1981). A Lua na Sarjeta (1983) e, sobretudo, Betty Blue (1986). Ao som da emblemática trilha sonora de Gabriel Yared, Jean Hughes Anglade vive o papel de um aspirante a escritor que se apaixona pela personagem-título, uma jovem tensa e intensa, que ao poucos mergulha na loucura, cujo gatilho é, justamente, esse louco amor.
O rosto da atriz Beatrice Dalle, que interpreta Betty, tornou-se um dos ícones dos anos 80, e o cinema de Beineix, de cores saturadas, hiper-estilizado, no limite do artificialismo, tornou-se icônico, por dialogar com a estética publicitária de outros diretores que emergem nesse período, como os irmãos Ridley, dos hoje clássicos Alien: O Oitavo Passageiro (1979) e Blade Runner – O Caçador de Androides (1982), e Tony Scott, do grande sucesso Top Gun: Ases Indomáveis (1986) e Fome de Viver (1983), mais um filme que se encaixa na categoria de títulos que encapsulam seu tempo.
Há filmes e cineastas que não sobrevivem tão bem à ação do tempo. Ficam circunscritos à época em que foram realizados, não por serem exatamente datados, no sentido de hoje estarem ultrapassados.
Com roteiro baseado no romance de terror Whitley Strieber, The Hunger, título original do longa de Scott, traz o estilosíssimos Catherine Deneuve e David Bowie como Miriam e John, um casal de vampiros há séculos juntos e que chega aos anos 1980, vivendo em Nova York. O diretor bebe de referências clássicas, como o expressionismo alemão e o film noir, mas também das estéticas do pós-punk, mais precisamente da new wave, para narrar como o personagem de Bowie se percebe envelhecendo aceleradamente e vai buscar socorro em Sarah (Susan Sarandon), médica e cientista cuja área de pesquisa é justamente essa: o efeito do tempo sobre as células humanas. Forma-se aí um dos triângulos amorosos mais sensuais – e estetizados – do cinema da época.
Desse mesmo período, na cinematografia nacional, há dois filmes exemplares: Cidade Oculta (1985), de Chico Botelho, e Anjos da Cidade (1986), dirigido por Wilson Barros. Os dois têm em comum a geografia urbana, noturna e cosmopolita da cidade de São Paulo, também com forte influência do film noir.
Com trilha sonora do paranaense Arrigo Barnabé, também corroteirista, Cidade Oculta, assim como Anjos da Noite, é um filme-coral, em que a narrativa é conduzida por vários personagens, cujas trajetórias se entrecruzam. São seres notívagos – bandidos românticos, policiais corruptos, uma mulher misteriosa (Shirley Sombra, vivida por Carla Camuratti) – em uma trama que envolve perseguições, tiroteios e traições.
No longa de Wilson Barros, não há uma trama policial, e sim caleidoscópio de encontros e desencontros existenciais entre personagens marginais, também da noite. Uma prostituta, com ares de vedete, vivida por Marília Pera, uma transformista (Chiquinho Brandão), um garoto de programa (Guilherme Leme). Representantes do que o pesquisador Renato Luiz Pucci Júnior chama de neon-realismo, são filmes que se alinham por vários caminhos estéticos, visuais e temáticos com o cinema de Beineix e dos irmãos Scott.