No último Festival de Cinema de Berlim, foi lançada uma versão restaurada e digitalizada de Maurice, longa-metragem de James Ivory. O filme completa 30 anos em 2017 ressurgindo de um injusto esquecimento e vem ganhando entusiasmadas revisões da crítica internacional. A produção é baseada na obra homônima de E. M. Forster (1879-1970), um dos grandes escritores britânicos do século 20 e também nome incontornável dos estudos literários – é dele o clássico Aspectos do Romance (1927), lançado no Brasil pela Editora Globo, lido e estudado ao redor do mundo.
Ivory já havia levado às telas, em 1985, outro livro de Forster, Uma Janela para o Amor, sucesso de público e crítica, vencedor de três Oscars: direção de arte, figurino e roteiro adaptado. O êxito do filme encorajou o cineasta e seu companheiro de toda uma vida, o produtor indiano Ismail Merchant (1936-2005), a dar um passo ousado: adaptar Maurice, romance de temática homossexual, apenas publicado, a pedido de Forster, após sua morte. Embora seja uma obra de ficção, a história tem evidentes traços autobiográficos que o escritor preferiu manter em relativo sigilo.
Exibido pela primeira vez em 1987 no Festival de Veneza, Maurice foi recebido com entusiasmo pelo júri, que lhe concedeu três prêmios, algo raro em uma mostra competitiva: o Leão de Prata, recebido por Ivory; melhor trilha sonora, dada ao compositor Richard Robbins, e a Copa Volpi (troféu de melhor ator), dividida por James Wilby e Hugh Grant, à época no início de sua carreira e ainda pouco conhecido.
Apesar de todo o prestígio de seu diretor e de Forster, Maurice teve um lançamento bem mais tímido do que Uma Janela para o Amor, certamente por conta de sua temática tabu, que o colocou em uma espécie de nicho mais restrito, o dos “filmes gays”. Ainda assim, chegou a ser indicado ao Oscar de melhor figurino, perdido para O Último Imperador, de Bernardo Bertolucci.
Exibido pela primeira vez em 1987 no Festival de Veneza, Maurice foi recebido com entusiasmo pelo júri, que lhe concedeu três prêmios: o Leão de Prata, concedido a Ivory); Osella de Ouro, dado ao compositor Richard Robbins, pela primorosa trilha sonora; e a Copa Volpi (de melhor ator), dividida por James Wilby e Hugh Grant.
No centro da trama está o personagem-titulo, vivido por com notável contenção por Wilby (de O Retorno a Howard’s End, outro livro de Forster adaptado por Ivory). Ele é um jovem da burguesia provinciana inglesa na primeira década do século 20, quando ele ingressa na Universidade de Cambridge. Lá, ele conhece Clive (Grant, de Um Lugar Chamado Notting Hill), por quem se apaixona perdidamente.
Embora seu amor seja em certa medida retribuído, Clive, que tem ambições políticas, se recusa a assumir o relacionamento, colocando limites até mesmo no plano físico: é adepto do ideal platônico. Vale lembrar aqui que, a essa época, a homossexualidade era considerada crime no Reino Unido e figuras como o escritor e dramaturgo irlandês Oscar Wilde (de O Retrato de Dorian Gray) foram presas e condenada por seus “atos imorais”.
Menos refém das normas, também por pertencer a uma classe social inferior, Maurice coloca seus sentimentos acima de suas pretensões profissionais, e sofre por não ter com Clive uma relação plena, ainda que secreta. Isso não os impede que convivam intensamente sob a fachada de uma grande amizade. São inseparáveis. Até o momento em que um conhecido, que também foi colega deles em Cambridge, é preso e desmoralizado publicamente em decorrência de sua sexualidade.
O fato, amplamente noticiado pelos jornais ingleses, faz com que Clive opte por um afastamento e resolva se casar. A rejeição leva Maurice a mergulhar em uma intensa crise de identidade. Mas esse é apenas uma parte de sua história.
Graças ao rigor estético de seus filmes, mas também pela sutil, ainda que por vezes bastante contundente, crítica de usos, costumes e valores culturais presente em quase toda sua bela filmografia, Ivory é bem mais do que um esteta apaixonado por literatura. É, hoje, reconhecido com um autor que, além de Forster, adaptou para o cinema obras de Henry James (Os Europeus, de 1979, e Os Bostonians, de 1984) e Kazuo Ishiguro (Vestígios do Dia, 1993). Mas sempre com um olhar todo próprio.
Embora bastante fiel ao romance de Forster, escrito entre 1913 e 14, mas apenas publicado em 1971, é visível a paixão com que filma Maurice, que agora emerge como clássico para toda uma nova geração de espectadores. Sobretudo porque, já no livro, se recusa a colocar o protagonista na posição de mera vítima de uma sociedade opressora. Ele reage, sem que aqui nesta resenha sejam revelados maiores detalhes da trama, luta por sua felicidade, desafiando várias regras.
Em uma geografia social e cultural muito próxima à da premiada série Downton Abbey, Maurice (lançado em DVD no Brasil pela Cult Classic mas hoje esgotado) deve ter sua nova versão exibida em festivais ao redor do mundo e eventualmente lançada em DVD e Blu-ray. Até lá, vale lembrar que o filme conta com uma bela edição de 2004, distribuída no mercado norte-americano pelo prestigiado selo Criterion, dentro de uma coleção dedicada à obra do casal Merchant e Ivory.
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