Muitos de nós ainda tentam entender o levante conservador que parece ter envolvido boa parte dos brasileiros nos últimos anos. O culto orgulhoso ao lema de “Deus, pátria, família” explicita a exposição não de algo novo, mas de um sentimento que talvez estivesse adormecido nesta nação. Medusa, longa-metragem de Anita Rocha da Silveira, explora a onda conservadora e neopentecostal pela ótica do feminino.
Premiado internacionalmente, o filme transita entre o horror, o drama e a fantasia para acompanhar a história de amigas frequentadoras de uma igreja que, no tempo vago, perseguem outras mulheres que consideram promíscuas. Embalado por uma fotografia provocante em tons neon, Medusa foca especialmente em Mariana (Mari Oliveira), uma das adolescentes, que começa a se confrontar com suas convicções enquanto participa da turma liderada por Michele (Lara Tremouroux, vencedora de melhor atriz coadjuvante no Festival do Rio). Esta última é uma espécie de blogueira de maquiagem e está à frente do grupo musical feminino da igreja, chamado “Preciosas de Cristo”.
O fanatismo religioso das meninas – e dos membros da igreja como um todo – é tão exacerbado que elas comandam uma guerrilha bizarra, em que usam máscaras e se unem para espancar as mulheres tidas como “erradas”. Há um jogo que se sinaliza entre o teor fantasioso da trama e a realidade que ela carrega. Por mais que pareça tudo muito exagerado, está aí o noticiário diário para mostrar que menos ficção nesta história do que se pode imaginar.
O mito de Medusa
A sensação carregada por Medusa é perturbadora, uma vez que toda essa trama de horror nos é sempre entregue em tom disfórico e mesmo cômico, acompanhado por uma trilha sonora de primeira.
Pode parecer estranho o título dado ao filme, remetendo à célebre figura mítica da Medusa, o monstro com cobras na cabeça que ninguém pode olhar de frente, pois se tornará pedra. Mas a alegoria aqui faz todo o sentido: Medusa, no mito original, é uma sacerdotisa que foi seduzida por Poseidon, tornando-se “impura”. Por punição, Atena tira a sua beleza e a transforma numa górgona pavorosa.
Em Medusa, Anita Rocha da Silveira opera pela mesma lógica: a lascívia feminina passa a ser castigada pelas próprias mulheres – que, obviamente, carregam em si os mesmos desejos de quem elas perseguem. Todas as que resolvem “ceder” aos seus instintos seriam, de alguma forma, descendentes da Medusa. E talvez por isso mesmo mereçam ser desfiguradas.
A história se move a partir da rebelião silenciosa de Mariana, que aos poucos começa a desconfiar que há algo muito errado acontecendo ali naquela igreja coordenada por um pastor carismático (Thiago Fragoso). Como se acordasse de um transe, ela resolve investigar uma lenda urbana, em torno de Melissa (Bruna Linzmeyer), uma atriz que foi atacada e teve seu rosto queimado. Não se sabe se Melissa morreu ou se desapareceu e ainda continua por aí, já que seu corpo nunca foi encontrado.
A sensação carregada por Medusa é perturbadora, uma vez que toda essa trama de horror nos é sempre entregue em tom disfórico e mesmo cômico, acompanhado por uma trilha sonora de primeira. A performance das “Preciosas de Cristo” com uma versão de “Sonho de amor” (rebatizada de “Jesus é meu amor”), um clássico dos anos 1980 na voz de Patrícia Marx, é simplesmente hilária.
Mas é a trilha sonora também que marca as cenas mais impactantes do longa. Preste atenção já na belíssima cena inicial, em que a gangue das “belas, recatadas e do lar” são apresentadas ao público ao som de “Cities in dust”, de Siouxsie and the Banshees.
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