Em Monster, um dos melhores filmes lançados em 2023, o cineasta japonês Hirokazu Kore-eda tece uma trama que se desdobra em três perspectivas intrincadas, reinventando de forma hipnotizante a narrativa cinematográfica dentro de sua própria obra.
O enredo, construído como uma tapeçaria que mescla elementos do thriller, do terror e do melodrama, não apenas evoca o absurdo kafkiano, mas também entrelaça com maestria o íntimo drama pessoal – e social – característico do diretor japonês. Trata-se de um desvio notável do estilo de Kore-eda, previamente premiado com a Palma de Ouro no Festival de Cannes por Assunto de Família em 2018, desta vez atribuído à engenhosidade do brilhante roteiro de Yuji Sakamoto, premiado este ano no mesmo festival francês.
Kore-eda reassume de maneira exclusiva o papel de diretor, algo que não fazia desde A Luz da Ilusão, em 1995. Sakamoto traz ao longa uma pegada detetivesca, imersa em mistério, mas que vai bem além disso. O cerne da trama se concentra na complexa relação entre dois adolescentes, Minato e Yori, cujas atitudes misteriosas incitam questionamentos sobre sua ligação e como o bullying escolar influencia suas ações.
A jornada tem início pela perspectiva da mãe de Minato, brilhantemente interpretada por Sakura Ando. Seu choque diante das mudanças no filho, sua acusação a um professor que pode estar abusando de sua autoridade e sua perplexidade diante da resposta impessoal da escola destacam as tensões sociais e os segredos enterrados na sociedade japonesa.
A narrativa, magistralmente construída, insinua que a cultura japonesa é enraizada no não-dito, revelando que cada personagem, por mais monstruoso que possa parecer, oculta elementos cruciais capazes de reconfigurar o enredo.
Essa abordagem inicial guia o espectador a desafiar convenções sociais até alcançar uma reflexão profunda sobre a estranheza e os “monstros” que confrontamos, muitas vezes refletindo nossos próprios tormentos.
Enquanto Rashomon, clássico de Akira Kurosawa com o qual Monster guarda traços narrativos assemelhados, enaltece a complexidade da mentira, o filme de Kore-eda almeja desvelar a verdade para além das aparências.
‘Monster’: redenção
A narrativa, magistralmente construída, insinua que a cultura japonesa é enraizada no não-dito, revelando que cada personagem, por mais monstruoso que possa parecer, oculta elementos cruciais capazes de reconfigurar o enredo. Todos, em sua essência, possuem espaço para redenção, um traço marcante das narrativas do cineasta, um dos mais instigantes do cinema japonês contemporâneo, ao lado de Ryusuke Hamaguchi, de Drive My Car.
O filme, longe de seguir uma linearidade narrativa, mergulha numa intrincada teia de personagens e detalhes, revelando um retrato multifacetado e urgente do Japão de hoje. Kore-eda opta por explorar sutilezas ao invés de adotar uma abordagem didática, oferecendo um panorama aparentemente confuso, porém singular, instigante, que prende a atenção do espectador do início ao fim.
O desfecho emocional une os elementos dispersos da trama, fazendo lembrar um tanto o tom de Close, do belga Lukas Dhont, indicado neste ano ao Oscar de melhor filme internacional. Kore-eda, no entanto, vai em uma direção ainda mais subjetiva, poética. A trilha sonora, último trabalho para o cinema de Ryuichi Sakamoto, morto em abril deste ano, tem papel fundamental nesse sentido.
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