Quando Lunar estreou há quase 10 anos, só se falava do novo respiro que era em relação a outros filmes do gênero de ficção científica e no debut primoroso do diretor Duncan Jones. Seu filme seguinte, Contra o Tempo, também teve uma ótima recepção e traz, além de uma direção muito competente, elementos de ação e sci-fi interessantes, mandando a mensagem de que o cineasta tinha um futuro no gênero.
Infelizmente, após todo o hype em torno do seu nome, Jones aceitou o gigante projeto de adaptar para o cinema o RPG online World of Warcraft (leia aqui nossa crítica sobre a adaptação) e lá se foram ao menos três anos de sua carreira. Sendo um fã do jogo, ele sempre disse como esse se tornou um projeto pessoal para ele, mas o resultado foi desastroso em crítica e público, e mesmo os fãs mais fiéis tiveram dificuldades em defender a adaptação, que inicialmente deveria ser uma trilogia, ideia já descartada pelo estúdio.
Ficou a vontade de ver mais do diretor, já que um tropeço pode acontecer na carreira de qualquer um e se tratava de um filme bem diferente do que ele estava acostumado. Pois bem, para o seu quarto e mais recente filme, Mudo (parceria com a Netflix), ele volta ao universo do longa que fez sua carreira nascer, em uma “sequência espiritual” de Lunar. Não funcionou. Em comum nos dois últimos filmes decepcionantes? Ele também roteirizou as obras, justamente o ponto mais falho delas.
Mas façamos um apanhado do que foi a carreira de Duncan Jones, antes mais conhecido como “o filho de David Bowie”.
Lunar, o primeiro e o melhor até agora
Deve ser difícil agradar tanto na sua estreia. Fica a sensação de sempre ter que superar seu trabalho anterior para provar que não foi uma sorte, um one hit wonder, mas sim só o início do que está por vir. No filme, ambientado em um futuro onde minerar a Lua é uma atividade lucrativa e eco sustentável, Sam Bell (Sam Rockwell, indicado ao Oscar 2018 de melhor ator coadjuvante, possivelmente em seu melhor papel) está quase terminando um período de três anos sozinho, e com comunicação restrita com a família, na estação espacial da Corporação Lunar. Quase sozinho na verdade, já que o computador GERTY (dublado por Kevin Spacey, pré-exílio) o faz companhia e cuida de sua saúde. Obviamente, uma série de eventos faz ele questionar os acontecimentos e sua sanidade. Dizer mais que isso seria estragar a experiência de um desavisado.
Em três momentos de Mudo, vemos referências de Lunar que os estabelecem no mesmo universo: no posto de abastecimento de carros elétricos da Lunar Co, onde os personagens passam e por duas vezes quando o personagem de Sam Bell aparece na TV (em uma participação especial não creditada de Rockwell) ou é citado exatamente pelos acontecimentos do primeiro filme, indicando que se trata de um período após o longa anterior. O diretor disse que se trata de um epílogo da história de Bell.
Contra o Tempo, uma mostra de consistência
Esse é o único filme da carreira de Duncan Jones que não tem roteiro, ou ao menos o argumento, criado por ele mesmo. E mostra como ele é um diretor muito competente. Colter Stevens (Jake Gyllenhaal) é um soldado que faz parte de um experimento do governo que permite a ele voltar no passado entrando no corpo de outra pessoa por alguns minutos, somente o suficiente para investigar um acidente que já aconteceu e preveni-lo. Tem ótimas cenas de ação e suspense, além de uma trama de investigação e algumas poucas reviravoltas interessantes.
Warcraft: O Primeiro Encontro com a decepção… digo, Entre Dois Mundos
Acredito que, preocupado em agradar os fãs como ele, Jones se atentou muito aos detalhes de criação do universo que se passa o longa e esqueceu da narrativa que precisava amarrar todos os personagens. Chega a ser ofensivo com o espectador o quão simplória e sem sentido é a sequência de eventos e a apresentação da maioria dos personagens. “Olha, lembra aquele cara? Ah, é mesmo, ele tem um filho? Agora que você viu que ele tem um filho, vou matar ele aqui rapidinho pra criar um motivo, mesmo que ninguém se importe ou acredite que o cara se importa, pois vimos uma cena meio forçada com os dois e olhe lá. Ah, nós também precisamos que esses inimigos mortais aqui virem amigos, mas tem pouco tempo, então acende uma fogueira e muda toda a concepção que um tem do outro”. Vou parar por aqui antes que soe ainda mais ranzinza, mas Warcraft foi um raro filme que eu fiquei brava enquanto o assistia pelo tempo de vida perdido.

Mudo… e esquizofrênico
Eu provavelmente assistiria a Alexander Skarsgård (True Blood, Big Little Lies) interpretar uma árvore no teatro do colégio e me surpreenderia, mas vale o elogio. Ele é perfeito na pele de Leo, o barman mudo do título que tem somente um conforto na vida, que é seu amor pela garçonete/prostituta Naadirah (Seyneb Saleh). Quando ela some, ele faz de sua vida a missão de encontrá-la e você acredita em cada expressão de dor, confusão e inocência. Jornada onde intercala surtos de violência (que existe por quê? Por ele ser amish? Por ser mudo? Sei…) com a sua natureza gentil e dócil. Mas isso é só metade do filme.
Ao mesmo tempo, e com tanto tempo de tela quanto, acompanhamos o desertor americano Cactus (Paul Rudd) que tenta conseguir documentos falsos para voltar aos Estados Unidos com a filha. Juntamente com o amigo Duck (Justin Theroux, que só reconheci em closes nos minutos finais do filme) ele comete atrocidades e trabalha para criminosos em uma Berlim futurista para conseguir seus objetivos. Eventualmente as histórias se conectam, claro, mas tarde demais pra se justificar. Mesmo o título indica que Leo teria uma relevância maior do que de fato tem, a história não é sobre ele, ele realmente mais parece um capanga, como o chamam em alguns pontos da narrativa. É como se tivessem tentado fazer uma versão menos contemplativa de Drive (2011).

Duncan Jones está gastando todo o crédito que ganhou com os trabalhos anteriores, mas estou aqui como os torcedores de futebol, aguardando uma virada.
Tecnicamente, o trabalho de Jones é quase irrepreensível. Sua direção de arte e construção de universos é primorosa, seja no universo de Lunar e Mudo (ainda que eu já esteja com preguiça dessa aura cyberpunk trazida de volta pelo culto a Blade Runner e zzzzz) ou no mundo de Warcraft, que pode ter vários defeitos, mas esteticamente é bem impressionante e fiel ao game.
O problema maior é o quase descaso com a narrativa e a coerência dos personagens dentro da história. Se em Warcraft tudo acontece muito rápido e o filme parece ter pulado horas de contexto que teriam tornado metade dos acontecimentos críveis, em Mudo parecem sobrar histórias paralelas e personagens desnecessárias. E o pior é que são tratadas como sacadas geniais. Como é o caso da relação do protagonista com a água e sua religião, da revelação meio fora de tom do personagem Luba em determinado momento e de toda a subtrama do personagem de Justin Theroux. Perturbadora, sim, mas gratuita e desnecessária para a narrativa que deveria ser a principal. Verdade seja dita, o filme só faz sentido pelo elenco incrível.

Aliás, só mais uma divagação: ainda acho que a irmã de Leo tinha alguma relevância inicial e foi cortada completamente. Até mesmo creditada como “Jovem Sybille” no IMDb ela estava, não “Irmã do Leo” como é comum a personagens muito coadjuvantes, e se tem uma jovem, geralmente se tem a versão adulta. Enfim.
Os créditos terminam homenageando os falecidos recentemente David Jones e Marion Skene, o pai (em seu nome de batismo) e a babá considerada segunda mãe do diretor. Aliás, a faca que o personagem de Rudd usa frequentemente pode ser considerado um easter egg, já que se trata de uma faca da marca icônica Bowie.
Duncan Jones está gastando todo o crédito que ganhou com os trabalhos anteriores, mas estou aqui como os torcedores de futebol, aguardando uma virada e cantando “EU-A-CRE-DI-TO”.
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