“Tento arrancar-me ao Imaginário de amor: mas o Imaginário queima por baixo, como a turfa mal apagada; abrasa-se de novo; surge novamente o que havia sido renunciado; do túmulo mal fechado irrompe bruscamente um longo grito.” O trecho do compêndio de verbetes Fragmentos de um discurso amoroso, do renomado linguista Roland Barthes sobre o exílio de um imaginário amoroso, talvez ambiente muito bem o longa-metragem de Gustavo Jahn e Melissa Dullius. Muito Romântico (2016), assim como o clássico filme Limite (1931), de Mário Peixoto – que, aliás, é uma ótima referência à alusão da presença de um vasto oceano em ambos os filmes – lida com a solidão artística (e, por que não, existencial) de um casal de brasileiros vivendo na Alemanha.
Da mesma forma que a obra-prima de Barthes, o filme é uma colcha de retalhos: de pensamentos, de citações, de memórias, de fotografias, de cores, de sons, de lugares. É até estranho pensar que um filme com tanto experimentalismo tenha conquistado o circuito comercial, tão afeito a narrativas diretas. Muito Romântico lembra muito bem (e isso o longa faz com maestria) que fazer cinema é trabalhar com montagens, recortes, fragmentos. Mais do que simplesmente tecer um fio narrativo, o longa acaba sendo uma experiência sensorial na qual se sente mais do que se constrói uma história.
Outra curiosidade do filme é que, além de ele ter sido autofinanciado, foi gravado num intervalo de nove anos. Inicialmente, assim como apresenta o início da obra, o casal embarcou num navio cargueiro em uma travessia de Porto Alegre a Berlim, na Alemanha. Ao longo desse período, o casal foi formando uma rede de conexões: com artistas, intelectuais e outros cineastas. Mais do que uma ode ao relacionamento afetivo, Muito Romântico é uma celebração à arte em fragmentos, seja na dança, na música, na literatura, na arquitetura ou no movimento.
Mais do que uma ode ao relacionamento afetivo, ‘Muito Romântico’ é uma celebração à arte em fragmentos.
É interessante notar também que o longa é bilíngue: há narrações de trechos tanto em alemão quanto em português. Aliás, uma das cenas mais lindas do filme é quando uma atriz alemã narra um trecho de um poema em português, com o sotaque estrangeiro típico. Essa “desterritorialização” é, inclusive, uma proposta dos próprios diretores, que acreditam que “a maneira como as sociedades ao redor do mundo têm se desenvolvido tem colocado a noção de fronteiras em constante perspectiva e questionamento”. Assim também é o filme que não se propõe a estar em apenas “um lugar” ou apenas “um tempo” – ele transcorre uma infinitude de momentos e espaços que podem mudar num piscar de olhos.
Muito da cultura berlinense está exposta no filme de maneira implícita, seja nos personagens coadjuvantes que participam da trama do casal ou nas cenas das ruas e algumas especificidades urbanísticas que compõem a colcha de retalhos. No geral, o longa bebe muito do nouvelle vague, do romantismo típico de Truffaut – uma das cenas, inclusive, foi claramente inspirada no filme Jules et Jim (1962), quando o casal está na cama postos para dormir, cada um lendo um livro.
Muito Romântico não é um filme de fácil entendimento e, de fato, peca muito na atuação dos atores que (seja propositalmente ou não) encenam os diálogos de forma quase automática e sem emoções. Mais do que um romance afetivo, o verdadeiro laço do filme é o amor à arte.
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