Dirigido pelo ator Silvio Guindane em sua estreia na direção de cinema, Mussum, o Filmis encerra sua narrativa com uma mensagem potente. O comediante faz um discurso comovente para uma plateia de crianças na quadra da Estação Primeira de Mangueira, dirigindo seu olhar diretamente para a câmera.
Mussum, vivido esplendidamente por Ailton Graça, enfatiza a importância de sonhar, encorajando o público a resistir ao preconceito racial e destacando a relevância da educação. Em um momento sentimental, ele repete uma frase que sua mãe, Malvina, costumava lhe dizer na infância, e que é repetida algumas vezes ao longo do filme: “Tem burro preto, mas preto burro não dá!”
Em uma estratégia recorrente em cinebiografias, a jornada de Antônio Carlos Bernardes Gomes, o Mussum, ganha nesse momento o caráter de história de superação, mas o longa-metragem não se reduz a isso.
Se a vida de Mussum é, sim, um exemplo notável de superação, o filme de Guindane tem como mérito – e não é pequeno – de ser, sobretudo, um filme popular brasileiro. Prova disso é que arrecadou a maior bilheteria de estreia de uma produção nacional em 2023 – R$ 2 milhões, entre quinta-feira passada e o último domingo.
Essa reconexão com o público, no momento político em que vivemos, é fundamental para a recuperação do cinema nacional depois dos quatro anos de trevas do governo Bolsonaro, para o qual a cultura era um inimigo. O triunfo comercial de Nosso Sonho, cinebiografia da dupla Claudinho e Buchecha, ainda em cartaz nos cinemas, é mais um sintoma dessa necessidade de (boas) narrativas populares, que se comuniquem com plateias mais amplas no Brasil.
‘Mussum, o Filmis’: vidas pretas importam
Mussum, o Filmis, assim como Nosso Sonho, retrata a trajetória de seu protagonista, um jovem preto e pobre, que sai de uma vida humilde em uma favela do Rio de Janeiro, para alcançar o sucesso na vida artística. No caso do comediante, o êxito veio primeiro na música, como integrante do grupo Os Originais do Samba. A ascensão na televisão veio a reboque, quando Mussum é convidado por Renato Aragão para integrar “Os Trapalhões”. Carlinhos, como era chamado em sua família, era filho de uma empregada doméstica analfabeta, Malvina, que trabalhou incansavelmente para criar oportunidades para ele, como muitas mães em condições semelhantes.
Mussum, o Filmis, assim como Nosso Sonho, retrata a trajetória de seu protagonista, um jovem preto e pobre, que sai de uma vida humilde em uma favela do Rio de Janeiro, para alcançar o sucesso na vida artística.
O racismo, por meio das privações materiais enfrentadas por Mussum, é discutido pelo filme, mas não é seu tema central. Vale, no entanto, lembrar aqui que o diretor do longa, Silvio Guindane, é negro e, portanto, tem lugar de fala.
Um dos principais conflitos que Mussum enfrenta em sua vida, e que está diretamente ligado à questão racial, mas de forma talvez mais indireta, é o dilema entre buscar segurança material, resultado dos esforços de sua mãe, e sua paixão artística pelo samba, o ímpeto de se tornar artista.
Esse conflito entre seus próprios anseios e as expectativas de Malvina já seria desafiador para um jovem branco e privilegiado, mas, para alguém de origens tão pobres, e preto, a escolha representa um salto em relação à vida de sua mãe – e um erro que poderia ser definitivo em sua vida.
Carlinhos abandona sua carreira estável na Aeronáutica e, de novo, já como Mussum, acaba sendo forçado a enfrentar esse conflito ao ter de escolher entre o samba e a televisão – ele é, carinhosamente, expulso dos Originais do Samba. Seus companheiros sabem que Mussum se tornou maior do que o grupo. Vale dizer aqui que, apesar de não ser um musical, o filme tem números musicais muito contagiantes, o que reflete a importância do samba na vida de seu protagonista.
De novo, as semelhanças com a cinebiografia de Claudinho e Buchecha não são mera coincidência. Em Nosso Sonho, que já atraiu mais de 500 mil espectadores aos cinemas, a dupla de funkeiros encontra na sua arte, mais do que uma saída, um caminho em direção a uma vida mais digna.
Elenco
Além do cativante desempenho de Aílton Graça, um ator muito versátil, que interpreta um Mussum gracioso, habilmente equilibrando momentos cômicos e dramáticos, outros nomes do elenco também brilham. O comediante Yuri Marçal transmite o enorme carisma do personagem em sua juventude, enquanto vive entre o quartel e o samba, escondendo essa dúvida de sua mãe superprotetora, personagem fundamental do filme.
Cacau Protásio sai da zona de conforto da comédia, e interpreta Malvina de forma sensível e nuançada. Neusa Borges, por sua vez, faz um trabalho magnífico como a personagem mais velha. Tanto ela quanto Graça foram premiados no Festival de Gramado, como melhor atriz coadjuvante e ator, respectivamente. Mussum, o Filmis também venceu o Kikito de melhor filme tanto pelo júri oficial quanto pelo popular. Essa dupla premiação explica a forte comunicação que a produção estabelece com os espectadores.
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