Há filmes que atropelam a gente e nos deixam sem chão. Não Amarás, do mestre polonês Krzystóf Kieslowski, fez isso comigo em 1989, quando o assisti pela primeira vez na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. Eu era estudante do último ano de Jornalismo na Universidade Federal do Paraná e tirei alguns dias, não me recordo muito bem quantos, para acompanhar o festival paulistano de corpo e alma. Via três, às vezes quatro longas-metragens, um depois do outro, em uma maratona cinéfila meio insana que teve como ápice a descoberta de Kieslowski, um diretor que eu levaria comigo para o resto da vida como um de meus cineastas de cabeceira.
Recordo ter visto Não Amarás no icônico Cine Olido, localizado à Avenida São João, coração da cidade. O filme foi, antes de seu lançamento nas telas, um episódio da minissérie Decálogo, produzida para a televisão polonesa, tomando como inspiração os dez mandamentos bíblicos do Antigo Testamento. Assim como Não Matarás, foi transformado em longa, fez bem-sucedida carreira nos festivais internacionais e acabou sendo escolhido pelo público da Mostra o melhor filme daquele ano. Eu não estava sozinho em meu deslumbramento, portanto.
Assim como todo o Decálogo, Não Amarás é um retrato sensível da Polônia nos derradeiros anos de domínio soviético. Um país mergulhado em ressentimento. Tomek (Olaf Lubaszenko) é um rapaz de 19 anos, funcionário do correio, que se apaixona platonicamente por Magdalena (Grazyna Szpolowska), sua vizinha dez anos mais velha. Tímido e inexperiente, ele a observa à distância, acompanhando seus menores movimentos. Observa seus encontros amorosos, monitora sua rotina, até tomar coragem para conhecê-la de perto, desencadeando um cruel desenlace.
O caráter voyeurístico da paixão de Tomek remete à própria experiência cinematográfica.
O caráter voyeurístico da paixão de Tomek remete à própria experiência cinematográfica. As janelas, tanto a sua quanto a de Magdalena, são telas que apresentam um recorte do real, que se transforma em narrativa por ação do desejo e da imaginação do rapaz. A mulher, bela, experiente e um tanto melancólica, se torna protagonista de sua vida, até então insípida, aprisionada pela rotina.
É tênue o limite entre o amor e a obsessão nesta obra-prima de Kieslowski, gênio por trás de A Trilogia das Cores e A Dupla Vida de Verônica, Tomek é um jovem nascido e criado sob um regime opressor, no qual vigiar e punir são práticas cotidianas. E ele, de certa forma, replica o comportamento do Estado em uma potente e arrebatadora metáfora política. É um personagem ao mesmo tempo corajoso, em sua destemida busca pelo amor, e patético, por ser incapaz de perceber o que se desenha diante seus olhos.
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