O filme que inaugurou a mostra competitiva de longas-metragens brasileiros, com o qual inicio uma série de resenhas sobre esse cinema nacional feito por mulheres, foi o hiperpessoal documentário Neirud, da diretora paulista Fernanda Faya. Narrado em primeira pessoa, é um tanto autobiográfico, mas não é (apenas) sobre a cineasta, e sim a respeito de uma pessoa de sua família mais próxima, com quem não compartilhava laços sanguíneos, e sim afetivos.
A mostra competitiva de longas-metragens brasileiros na edição deste ano do festival Olhar de Cinema, iniciada na última quinta-feira, apresenta um traço comum que chama a atenção: a forte participação de filmes dirigidos e sobre mulheres. Se não chega a ser um movimento estético, uma vez que cada cineasta é uma, com suas respectivas referências, formações e histórias de vida, seria um descuido imperdoável não refletir sobre essa emergência – ou seria erupção? – de narrativas cinematográficas no feminino.
A Neirud que dá título ao documentário aparece pela primeira vez na tela em um vídeo caseiro, quando Fernanda era apenas um bebê. A protagonista, uma mulher negra, alta, muito forte e majestosa, entra em cena de forma doce. Percebe-se o afeto que ela nutre pela menininha que pula de colo em colo em uma festa familiar.
Logo ficamos sabendo que Neirud é uma tia postiça de Fernanda, amiga inseparável da avó de Fernanda (na verdade, bem mais do que isso), e ambas iam e vinham porque levavam uma vida nômade, sempre na estrada, Brasil adentro e afora. Eram artistas circenses, como muitos ancestrais de Fernanda do lado paterno, descendentes de imigrantes ciganos.
Ao tentar reconstituir a trajetória da personagem, Fernanda se depara com uma dificuldade quase fatal para seu projeto de documentário: ao morrer, pouco depois da entrevista concedida em Santos, ela não deixou quaisquer fotos ou documentos sobre sua trajetória artística.
Mas Neirud não é, tampouco, sobre as raízes familiares da diretora, fincadas sob tendas de circos ao longo de mais de um século de Brasil. O documentário é uma investigação afetiva sobre a personagem-título, que dá uma única entrevista a Fernanda antes de morrer, à beira-mar de Santos, no litoral paulista. Foi abandonada pelos tios na casa de parentes, fugiu de casa, aos 8 anos tornou-se babá de uma família abastada em Belo Horizonte, que deixou para tornar-se artista de circo. Mais do que isso: para se tornar estrela de luta livre, sob o codinome de Mulher Gorila, por conta de seu grande porte, vigor físico e ancestralidade africana.
Ao tentar reconstituir a trajetória da personagem, Fernanda se depara com uma dificuldade quase fatal para seu projeto de documentário: ao morrer, pouco depois da entrevista concedida em Santos, ela não deixou quaisquer fotos ou documentos sobre sua trajetória artística. Havia ingressado em uma igreja evangélica, que deplorava o seu passado. Tampouco nos papéis deixados pela avó, Nely, para o único filho, pai da diretora, ela conseguiu encontrar evidências sobre a vida da lutadora. Fernanda viu-se diante de um imenso mar de reticências sobre aquela mulher que tanto marcou sua infância, adolescência e início de juventude.
Neirud é uma obra sensível e poética sobre busca e apagamento. Ao mergulhar na prospecção por sinais da vida de sua personagem, Fernanda vai desvendando mistérios que são tanto sobre a Mulher Gorila, que ela jamais viu em cena, quanto a respeito da sua própria história familiar. Todas essas narrativas estão enoveladas. É uma obra identitária belíssima, um ajuste de contas com a verdade e, por fim, uma tocante homenagem à companheira que sua avó tanto amou.
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