Ruby Rossi, protagonista de No Ritmo do Coração, parece ser uma garota norte-americana de classe média, como muitas. Vive em uma pequena cidade litorânea na Costa Leste, onde gerações de sua família têm vivido da pesca. Todas os dias, antes da escola, acorda às 3 horas, para ir ao mar com o pai, Frank, e o irmão mais velho, Leo. Quando retornam pela manhã, e vendem os peixes e crustáceos que apanharam em alto-mar, ela vai ao colégio, no qual cursa o último ano do ensino médio. Se consegue, toma um banho antes, para se livrar do forte odor dos pescados que traz no corpo.
Há, no entanto, uma informação faltando nesse breve resumo do dia a dia de Ruby: Frank e Leo, assim como sua mãe, Jackie, são surdos de nascença. Ela é a única ouvinte da família e sua participação na rotina de trabalho do pai e do irmão é essencial, seja para ouvir as mensagens que chegam por rádio ao barco da família, seja para negociar o preço do que eles trazem do mar.
Indicado a três Oscar, entre eles os de melhor filme e roteiro adaptado, No Ritmo do Coração, baseado no longa-metragem francês A Família Bélier (2014) e já disponível na plataforma de streaming Prime Video, é um daqueles pequenos grandes filmes que, a despeito do baixo orçamento e de não terem grandes astros no elenco, se tornam acontecimentos cinematográficos, figurando entre os melhores do ano. Sua jornada iniciou em 2021, no Festival de Sundance, a grande vitrine da produção independente nos Estados Unidos, do qual saiu com quatro premiações: Grande Prêmio do Júri, Prêmio do Público, melhor direção e elenco.
O roteiro direto e enxuto, sem firulas, com drama e comédia nas medidas certas, sem falar da direção bastante segura de Heder, faz com que No Ritmo do Coração flua na tela com muita autenticidade.
Mas o que fez com que o longa-metragem da cineasta Sian Heder, também autora do roteiro, cativasse público e crítica? Para além do fato de abordar de forma realista, tocante, a comunidade surda, No Ritmo do Coração traz um conflito inusitado, abordado com muita sensibilidade.
Vivida pela atriz revelação Emilia Jones (indicada ao BAFTA de melhor atriz por sua atuação), Ruby está em uma idade em que precisa tomar decisões importantes na sua vida, marcada pelo peso de ser a ponte entre a família e o mundo ouvinte. Ao longo da infância e da adolescência, ela foi vítima de bullying e discriminação justamente por ser a única capaz de perceber a forma como seus pais e irmão eram vistos pela comunidade em que vivem, muitas vezes os poupando. Ironicamente, seu refúgio, ao longo dos anos, tornou-se a música, que apenas ela consegue ouvir em sua casa.
Quando Bernardo Villalobos (Eugenio Derbez), professor de canto coral de seu colégio, identifica seu talento musical e lhe propõe o desafio de tentar uma bolsa de estudos para estudar em Berklee, uma das maiores escolas de música dos EUA, com sede em Boston, Ruby se vê diante de um grande dilema. Para concretizar seu sonho, ela terá de deixar a família, que dela depende mais do que nunca. Os Rossi, em dificuldades financeiras, apostam suas fichas na criação de uma cooperativa, mas sem a ajuda de Ruby, terão poucas chances de sucesso.
O roteiro direto e enxuto, sem firulas, com drama e comédia nas medidas certas, sem falar da direção bastante segura de Sian Heder, faz com que No Ritmo do Coração flua na tela com muita autenticidade. Em uma grande sacada, a cineasta escalou para os papéis de Frank, Jackie e Leo três excelentes atores surdos: respectivamente, Troy Kotsur, indicado ao Oscar de coadjuvante; Marlee Matlin, vencedora do Oscar por Os Filhos do Silêncio; e Daniel Durant, ótimo como o irmão mais velho da protagonista. Essa opção traz ao filme enorme potência. O original francês foi muito criticado por ter apenas um ator surdo no seu elenco.
É antológica, por exemplo, a sequência em que os Rossi vão assistir a uma apresentação de Ruby na escola e, mesmo sem conseguir ouvi-la cantar, vão se dando conta da importância da música na vida da filha. Emocionam-se, mas também ficam um tanto perplexos. Ela pode estar partindo. Poderia ser tudo muito piegas, apelativo, mas não é. Em nenhum momento do filme.
No Ritmo do Coração oferece ao espectador uma visão interna, nada exótica, de uma família ao mesmo tempo especial e parecida com tantas outras. Fala sobre preconceito, exclusão e busca por independência. Pertence a um gênero cinematográfico que os anglófonos chamam de coming of age (filmes sobre o amadurecimento, em tradução livre), que retratam a transição de um jovem para a idade adulta. E o faz com grande delicadeza e sensibilidade.
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