O cineasta norte-americano Robert Eggers tem uma habilidade única de transformar o cinema em algo muito além de narrativas convencionais, criando universos profundamente imersivos e sensoriais. Assistir a O Farol (2019) é quase como ser transportado para o coração de uma tempestade marítima, sentindo o sal da água invadir a pele e a mente ser levada ao limite. Sua obra de estreia, A Bruxa (2015), mergulha o espectador em um ambiente de rituais e crenças do século 17, onde é possível quase inalar o cheiro da lenha queimada e sentir o peso do medo impregnado no ar.
Essas histórias não apenas se apresentam ao público, mas se infiltram no inconsciente, permanecendo como ecos perturbadores. Contudo, em Nosferatu, uma nova interpretação do clássico expressionista alemão de F.W. Murnau, Eggers eleva sua capacidade de criar atmosferas densas a um patamar inédito, oferecendo uma narrativa que, mais do que contada, é vivida como uma experiência sensorial e emocionalmente intensa.
A maestria de Eggers se reflete não apenas na riqueza visual de seus cenários, mas também na forma como ele integra os detalhes históricos e culturais ao texto e à construção de personagens. Seu fascínio pela linguagem de época é evidente em cada linha de diálogo, nos quais insultos elaborados e expressões floridas se tornam peças fundamentais para transmitir a essência dos personagens e do ambiente. O cuidado com esses elementos transforma a obra em algo quase palpável, como se cada palavra e gesto fossem parte de um ritual cuidadosamente coreografado.
Cada enquadramento parece cuidadosamente planejado para imergir o espectador no mundo opressivo e gótico de Eggers.
Essa abordagem cuidadosa exige interpretações à altura, e Lily-Rose Depp entrega um desempenho surpreendente no papel de Ellen Hutter, uma jovem recém-casada cujo conflito interno é o coração pulsante do filme. Desde a abertura, uma sequência de beleza sombria e provocante, Ellen é apresentada como uma figura complexa, capturada entre o desejo e o terror.
Através de um chamado psíquico involuntário, ela desperta o vampírico Conde Orlok (vivido por Bill Skarsgård em uma performance que une a fisicalidade monstruosa a uma voz visceralmente ameaçadora). Orlok, emergindo de seu isolamento secular nas montanhas dos Cárpatos, invade os sonhos de Ellen, transformando seus momentos de descanso em um terreno de angústia e presságios. A relação dela com seu marido, Thomas (Nicholas Hoult), parece oferecer um breve refúgio, mas logo é interrompida pela necessidade de sobrevivência que os empurra para o desconhecido.
‘Nosferatu’: fotografia
A história se desenrola com uma tensão crescente, enquanto Thomas parte em uma missão destinada a conectá-lo ao sombrio Conde. Ellen, por sua vez, luta contra as visões cada vez mais intensas e a incompreensão dos que a cercam. O retrato de seus sintomas como uma forma de histeria feminina, tratado com métodos opressivos como o aperto de espartilhos e a contenção física, reflete não apenas a ignorância médica da época, mas também a vulnerabilidade de Ellen diante de forças que ela não consegue controlar ou nomear. A entrada de Willem Dafoe como o excêntrico professor Albin Eberhart von Franz adiciona camadas ao suspense, com seu fascínio pelo oculto e sua aparência descuidada, simbolizando a linha tênue entre a ciência e o misticismo.
A direção de fotografia de Jarin Blaschke é, sem dúvida, um dos aspectos mais notáveis do filme. A paleta de cores varia entre tons vívidos, como os vermelhos intensos que evocam sangue e paixão, e imagens quase monocromáticas, desprovidas de vida, que reforçam o tema da decadência e da morte.
Cada enquadramento parece cuidadosamente planejado para imergir o espectador no mundo opressivo e gótico de Eggers. As transições entre cenas criam uma narrativa visual que dialoga diretamente com o estado emocional dos personagens, como na justaposição entre crucifixos impotentes e estradas desertas, sugerindo o abandono e a inevitabilidade do horror.

A trilha sonora, elaborada por Robin Carolan, complementa essa atmosfera de maneira magistral. Composta por sons que evocam gritos desesperados e cordas que parecem despencar em um abismo, a música amplifica a sensação de desamparo e inevitabilidade que permeia a narrativa. As escolhas sonoras são tão importantes quanto os diálogos ou os elementos visuais, criando um ambiente onde cada detalhe contribui para uma experiência visceral.
O equilíbrio que Eggers alcança entre o grotesco e o sublime é impressionante. Ele alterna momentos de humor sombrio, como o comportamento insano de Herr Knock (Simon McBurney, excelente), com cenas de puro terror, como ruas infestadas de ratos ou visões de corpos drenados de vida.
Essa combinação resulta em um filme que não apenas se assiste, mas se sente – um pesadelo gótico que se agarra ao espectador, resistindo a ser esquecido. Eggers oferece aqui não apenas uma homenagem ao cinema expressionista, mas uma expansão de seus limites, reafirmando sua posição como um dos cineastas mais ousados e visionários de sua geração.
ESCOTILHA PRECISA DE AJUDA
Que tal apoiar a Escotilha? Assine nosso financiamento coletivo. Você pode contribuir a partir de R$ 15,00 mensais. Se preferir, pode enviar uma contribuição avulsa por PIX. A chave é pix@escotilha.com.br. Toda contribuição, grande ou pequena, potencializa e ajuda a manter nosso jornalismo.