Apesar da experiência com a direção de fotografia em Dona flor e seus dois maridos (1976), foi em Nunca fomos tão felizes (1984) que Murilo Salles estreou na direção de seu primeiro longa-metragem. Baseado no conto “Alguma coisa urgentemente”, de João Gilberto Noll, o enredo do filme tem como protagonista um adolescente chamado Gabriel (Roberto Battaglin), por volta de 17 anos, que foi colocado em um internato religioso logo após a morte da mãe. Certo dia ele recebe uma mensagem do pai (Cláudio Marzo), que deseja o encontrar. Sob o conselho de um dos padres do colégio, ele é, então, indicado a encontrá-lo e passa a morar com ele.
É interessante notar que o filme se passa no ano de 1970, auge da repressão militar no Brasil. Neste mesmo ano, o general Emílio Médici era presidente do país e a Seleção Brasileira conquistava seu terceiro título da Copa do Mundo de futebol masculino no México. Ou seja, o país estava recheado de emoções. No filme de Murilo, no entanto, todo este contexto externo é irrelevante. No máximo, temos noção do que está acontecendo pelas manchetes de jornais e pelos anúncios na televisão, o meio mais recorrente e mais utilizado pela população naquele momento, junto ainda ao rádio.
Nunca fomos tão felizes, pelo contrário, é um filme repleto de pequenos detalhes, de pequenas políticas de repressão que não atingiam diretamente à massa do país como um todo, mas apenas quem estava indiretamente ligado à militância. Este seria o caso de Gabriel, que ao longo do filme percebe que o pai guardava vários segredos que não compartilhava com o filho desejando protegê-lo. É assim que ele o deixa morando sozinho em um apartamento gigante e vazio em Copacabana, em frente ao iluminado letreiro do Hotel Califórnia. O garoto passa, então, a vasculhar gavetas e armários em busca de respostas — assim como de uma identidade, tanto sua quanto a do pai.
Nunca fomos tão felizes é uma colcha de retalhos de silêncios sobre o Brasil de 1970.
Nessa jornada, Gabriel acaba indo a uma boate e começa a se relacionar com uma das prostitutas. Nunca fomos tão felizes acaba sendo também um filme sobre a descoberta de sua própria sexualidade, mesmo com tantos acontecimentos ao seu redor. É interessante notar que Salles, em entrevista à revista Filme Cultura, afirma que desejava fazer do filme não uma narrativa cinematográfica cinemanovista, e, sim, um apanhado de pequenas políticas que acompanham a vida particular e privada. De fato ele o faz.
O jovem Gabriel, então, descobre que, na verdade, o apartamento é de uma antiga namorada do pai (Suzana Vieira). Assim, a história se constrói principalmente neste embate entre pai e filho. Há momentos em que a extensão da vida pública se estende à privada, como quando o pai de Gabriel descobre que um de seus colegas de militância foi encontrado morto ou quando o adolescente, que havia sido incumbido de entregar uma misteriosa maleta para um amigo de seu pai, é abordado por uma tropa de militares na rua, uma situação um tanto quanto rotineira naquele período de intervenção militar.
Dessa forma, o filme vai criando uma narrativa bastante particular e peculiar sobre a relação entre pai e filho, assim como sobre as descobertas não apenas quanto à situação política do país, mas também quanto à própria identidade do garoto Gabriel. Enquanto que na TV, o governo anunciava que o brasileiro médio “nunca foi tão feliz”, a relação entre o pai e o filho desmoronava por conta da repressão política. Nunca fomos tão felizes é uma colcha de retalhos de silêncios sobre o que acontecia com o Brasil naquele momento tão importante.
ESCOTILHA PRECISA DE AJUDA
Que tal apoiar a Escotilha? Assine nosso financiamento coletivo. Você pode contribuir a partir de R$ 15,00 mensais. Se preferir, pode enviar uma contribuição avulsa por PIX. A chave é pix@escotilha.com.br. Toda contribuição, grande ou pequena, potencializa e ajuda a manter nosso jornalismo.