Se você tem alguma intimidade com o trabalho da artista multimídia Miranda July, sabe que ela tem um talento absolutamente peculiar: o de pegar elementos da vida mundana, que costumam passar invisíveis aos nossos olhos, e revesti-los de significado poético. Ela coleta ainda aspectos ridículos de nossas existências ordinárias, ri deles e, mesmo assim, nos faz sentir cobertos por afetos.
De alguma forma, esse seu amor pelo cotidiano e seus sentidos está presente em O Futuro, uma das poucas obras que July já lançou no cinema (seu primeiro longa foi Eu, Você e Todos Nós, de 2005). Nesta obra de 2011, ela lança luz sobre a histórica pitoresca (como sempre) de um casal que enfrenta uma espécie de crise de meia idade. Aos 35 anos, eles concluem que em breve terão 40, que são os novos 50, e a partir daí é só ladeira abaixo.
Sophie (a própria Miranda July) e Jason (Hamish Linklater, de Missa da Meia-Noite) são dois jovens namorados que dividem a vida e um apartamento. Eles parecem mais imersos em seus mundos individuais do que engajados um com o outro. Na primeira cena do filme, os vemos dividindo o sofá de forma especular, quase como se fossem gêmeos, e não um casal.
Nesta obra de 2011, ela lança luz sobre a histórica pitoresca (como sempre) de um casal que enfrenta uma espécie de crise de meia idade.
Eles não têm filhos. Mas quando resolvem adotar um gato velho numa clínica de animais, se confrontam com um dilema. O gato, que está com a pata quebrada e tem problemas renais, precisará ficar internado por um mês. Se for bem cuidado, ele poderá viver até cinco anos a mais, que Sophie e Jason intuem que serão uma espécie de “prisão” – tal como a criação de um filho (tirando aqui talvez um sarro da figura do “pai de pet”).
O gato, aliás, é figura marcante em O Futuro, já que ele funciona como uma espécie de narrador onisciente que, com sua pata engessada, seu rosto escondido e sua voz fofinha, conta de maneira espirituosa a história desse casal, explicando como ele – que foi nomeado Paw Paw – se inseriu nessa relação como um divisor de águas. Uma participação com toques de realismo fantástico, mas que é perfeitamente cabível em uma obra de Miranda July.
Sophie e Jason decidem então que têm um mês para prestar contas consigo mesmos e o que queriam estar fazendo da vida a essa altura do campeonato. Ambos estão em trabalhos provisórios: Sophie dá aula de dança para crianças, e Jason está em um subemprego em que atende, num call center em casa, pessoas que precisam de algum tipo de ajuda com problemas tecnológicos.
Aos 35 anos, quem eles queriam ser? Não há clareza quanto a essa resposta. “Eu achava que seria mais inteligente. A esta altura, achava que seria um líder mundial”, menciona Jason, em um devaneio megalomaníaco que nos esclarece que ele e a namorada ainda têm algo de infantil, e precisam finalmente encarar o “futuro”.
A crise constrangedora de um casal
Mas é claro que este é um filme de Miranda July. Por isso, o que podemos esperar é uma obra desajustada e meio constrangedora, que se atravessa por elementos estéticos estranhos, mais típicos de outras linguagens artísticas do que necessariamente do cinema.
O Futuro está repleto de pequenas miudezas do cotidiano que fazem a marca dessa artista. Como, por exemplo, uma menina que se lamenta por conta de um desenho seu que foi feito pelo pai e que ninguém quer comprar no abrigo de animais, ou dos vizinhos que Jason visita quando larga seu emprego e passa a fazer trabalho voluntário, sem bem saber o porquê, para uma organização que milita em prol do meio ambiente (nesta parte, em que há relances da vida dos outros, parece haver alguma remissão ao romance O Escolhido Foi Você).
Ambos passam a trilhar caminhos diferentes durante esse um mês, que os afastam um do outro. Jason faz amizade com um idoso casado há muitas décadas, e que diz a ele que, aos quatro anos de namoro, o casal ainda está na fase inicial dos problemas conjugais. Já Sophie resolve fazer vídeos diários de suas danças bizarras, seguindo o caminho de muitas outras mulheres anônimas que procuram desesperadamente uma plateia no Youtube, mesmo sem ter talento.
Mas no meio dessa história, mais uma rota inusitada é seguida. Sophie liga para o pai da menina do desenho, que foi comprado por Jason. É um homem mais velho que parece não se incomodar com a estranheza da situação. A partir daí, se desenvolve uma relação que será muito significativa nos rumos da dupla de namorados, que vê o prazo de 30 dias se esgotando aos poucos com mais perguntas que soluções.
Interessa aqui menos o que acontece com eles e mais os pequenos elementos simbólicos com que Miranda July atravessa a obra: como uma dança tocante que Sophie faz usando uma camiseta amarela que ela estica e veste como uma espécie de casulo, ou uma menina que cava uma cova no próprio quintal, ou uma lua que conversa com Jason.
Mas nada com o qual já não estamos acostumados ao consumir as criações dessa intrigante artista. Caso o filme o deixe com um sabor meio agridoce na boca, saiba que provavelmente era esta a intenção.
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