O que dizer a respeito de um protagonista que devora polvos vivos e esmaga os crânios de seus inimigos com precisão científica? Os mais afobados vão responder que o personagem deve se tratar de mais uma extravagância do norte-americano Quentin Tarantino, acusado de estetizar e banalizar a violência no cinema contemporâneo. Não estarão completamente errados.
No Festival de Cannes de 2004 – aquele mesmo que concedeu uma inesperada Palma de Ouro ao documentário Fahrenheit 11 de Setembro, de Michael Moore -, Tarantino fez questão de convencer o júri oficial, presidido por ele, a premiar Oldboy, hoje uma clássico contemporâneo, com o Grande Prêmio, espécie de segundo lugar do certame. Não é de se estranhar. A produção, dirigida pelo cultuado Park Chan-wook, tem muito mais a ver com o cinema do diretor de Kill Bill e Era uma Vez em Hollywood, do que o excêntrico personagem descrito no parágrafo acima possa sugerir.
Com uma narrativa fragmentada, que subverte a cronologia dos acontecimentos, Oldboy é uma daquelas obras cuja visão é obrigatória para quem busca compreender a trajetória do cinema coreano, que neste ano atingiu o seu ápice de reconhecimento internacional com Parasita, vencedor de quatro Oscars, entres eles os de melhor filme e direção (para Bong Joon-ho), além de já ter conquistado a Palma de Ouro em 2019.
Oldboy é violentíssimo, nada linear e não tem personagens empáticos, que despertem identificação ou piedade do espectador. A trama tem início quando Dae-su (o excelente Choi Min-sik), um homem de negócios como milhões de outros espalhados pelo planeta, toma um porre homérico e acaba, sem saber o motivo, confinado a uma prisão particular. Na cela – que na verdade mais parece um quarto de hotel duas estrelas – ele tem como companhia apenas um televisor e a pintura de um homem parecido com Jesus.
Com uma narrativa fragmentada, que subverte a cronologia dos acontecimentos, Oldboy é uma daquelas obras cuja visão é obrigatória para quem busca compreender a trajetória do cinema coreano…
Para não enlouquecer, Dae-Su faz exercícios físicos e começa a cavar, lasca a lasca, um buraco na parede, sabendo que a passagem não lhe garantirá a liberdade. Apenas uma ocupação.
Depois de anos preso, ele é solto, também sem qualquer explicação plausível. O retorno à vida em sociedade, contudo, não é acompanhado por uma sensação de alívio. O ex-empresário tem apenas uma ideia em mente: descobrir os motivos de sua prisão e vingar-se do responsável pelos anos que perdeu enclausurado. Eventualmente, irá encontrar seu algoz, que lhe dará o exíguo prazo de cinco dias para descobrir as razões de seu martírio.
Um mestre da composição visual, Park Chanwook faz de sua ode à vingança uma obra-prima da cinematografia moderna. Cada quadro, cena e sequência trazem a marca de um diretor meticuloso, obcecado pela forma. O interessante é que todo esse detalhismo não é vazio. Está à serviço, também, de um notável contador de histórias, que seduz, confunde, surpreende e estarrece. Algo raro em tempos regidos pela previsibilidade.
Cinéfilos mais puristas vão, assim como já fazem com Tarantino, cobrar de Oldboy, que em 2013 ganhou um desnecessário remake dirigido por Spike Lee, maior profundidade de intenções e transcendência. Não vão faltar aqueles que dirão, em coro, que Chanwook deveria dirigir comerciais e não cinema. Rabugice reacionária e conservadora, enfim.
Assim como acontece na filmografia de Tarantino, o trabalho do coreano parte do princípio de que, ao explorar os limites da forma, subvertendo as convenções do gênero “filme de ação”, o diretor está, sim, fazendo uma contribuição valiosa ao fazer cinematográfico, revisitando, reinventando e implodindo fórmulas. Ele tem razão.
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