Carlos Nader é conhecido por seus documentários que mesclam arte e biografia. Alguns dos mais famosos deles são Pan-Cinema Permanente (2008), que trata sobre a vida do poeta baiano Waly Salomão, e Eduardo Coutinho, 7 de outubro (2015), sobre o renomado documentarista brasileiro. Já Fim da viagem (1996) tem uma premissa essencialmente existencialista ao retratar a vida de um caminhoneiro que transportava porcos vivos do Paraná ao Rio de Janeiro até o momento de abate dos animais.
Em A paixão de JL (2008), Nader se utiliza do artifício das fitas cassetes gravadas pelo artista plástico José Leonilson, artisticamente conhecido como apenas Leonilson, sobre confissões, sonhos, memórias e pensamentos sobre sua vida íntima – e como isso era intrínseco a sua própria obra.
Leonilson, o objeto da obra de Nader, nasceu em Fortaleza, no Ceará em 1957. Era pintor, desenhista e escultor. Aos quatro anos de idade, mudou-se para São Paulo com os pais, cursando educação artística e iniciando sua carreira sob tutela de artistas como Julio Plaza, Nelson Leirner e Antonio Dias. Cada uma de suas obras é construída como uma espécie de diário íntimo, completamente autobiográfico. Por volta de 1989, o artista começa a utilizar em seus trabalhos costuras e bordados que passaram a ser uma assinatura própria de sua arte.
Amigo próximo de Leonilson, Nader documenta em seu longa-metragem a trajetória do artista por pouco mais de três anos, desde 1990 até o seu falecimento, em 1993. Vítima de HIV, o artista utiliza de suas gravações como espécie de confessionário por conta de sua orientação sexual e, posteriormente, por conta de sua deterioração física. Ao longo das gravações, o documentário apresenta imagens que marcaram os momentos de vida do artista: a queda do muro de Berlim, as mobilizações populares em torno da redemocratização do Brasil e o impeachment de Collor.
Enquanto isso, reina a sensibilidade de Leonilson, que em suas gravações nos apresenta seu mundo onírico a quem escuta de maneira completamente exposta e intimista. Na tela, surgem imagens dos trabalhos artísticos: telas, exposições, palavras soltas, hieróglifos, frases. Todos componentes simbólicos de extrema importância na composição do universo do artista.
A paixão de JL é um retrato sensível da vida de um artista que vivia no exílio de si mesmo.
Fã de Madonna, Leonilson confessava se emocionar ao ouvir o som de “Cherish” e ao assistir a As asas do desejo (1987). A figura dos pais é também constantemente presente: ao mesmo tempo que o artista buscava um namorado, temia pela reputação com a família, o que mais tarde iria se agravar por conta da enfermidade. Sofre por Al, mas em seguida se apaixona perdidamente por Eitan e namoram – não sabemos ao certo se são nomes ou pseudônimos inventados pelo artista.
Em 1991, descobre que tem AIDS após um exame de rotina que achava que não ia dar em nada. Depois disso, sua vida muda completamente – e as suas obras expressam isso mais do que tudo. Confrontado com a ideia de ter de contar a família, o acervo artístico de Leonilson se torna cada vez mais catártico, com simbologias espirituais constantes. Seu último trabalho, uma instalação na Capela do Morumbi, em 1993, é repleto de tecidos brancos com bordados escritos “da falsa moral”, “do bom coração” e, por último, “Lázaro”. Talvez uma boa epígrafe de si mesmo.
É de suma importância destacar também que ele não lança mão de dizer que enquanto a vida interna de Leonilson acontecia, um mundo lá fora também existia: isso é visto nas passagens das edições do Jornal Nacional, nas cenas de Paris, Texas (1980) e até mesmo de A Família Dó Ré Mi. No entanto, o mundo interno sempre se conectava com os símbolos do externo como uma espécie de dinamite que sempre esteve ali, quieta e prestes a explodir.
A paixão de JL é um retrato sensível da vida de um artista que vivia no exílio de si mesmo. Mais do que apenas conhecer as peças que marcaram a vida artística de Leonilson, o espectador é capaz de captar a sua própria aura ao ouvir sua voz e torna-se mais do que um simples conhecedor, mas também um amigo que compartilha das suas angústias. Nader sabe como ninguém como fazer isso.
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