O cinema de não-ficção brasileiro foi destaque durante o fim de semana na 11ª edição do Olhar de Cinema. Na mostra competitiva, Filme Particular, de Janaína Nagata, e Alan, dos irmãos Diego e Daniel Lisboa, filmes com premissas e propostas completamente diferentes, atestam o vigor do documentário brasileiro contemporâneo.
‘Filme Particular’
O longa-metragem de Janaína Nagata, artista e pesquisadora paulista, é muito instigante em sua origem. A diretora parte de um rolo de filme em 16mm, comprado pela internet sem que ela conhecesse seu conteúdo, para fazer uma investigação que deixa o espectador perplexo.
De acervo familiar, com imagens feitas na África do Sul dos 1960, o filme não era um material bruto, intocado. Já havia passado por procedimentos de montagem.
Os primeiros 19 minutos são dedicados a esse conteúdo, ao qual foi adicionado apenas uma trilha musical dissonante, que nos tira de uma posição de conforto. Há algo que perturba ali, mas não sabemos exatamente o que é.
Na sequência, fazendo uso de recursos de pesquisa disponíveis online, as poucos as imagens vão sendo decifradas, no que se torna um mergulho surpreendente na complexa história social e política da então recém-criada República da África do Sul.
O que parece ser um documento imagético de âmbito meramente privado se desdobra em um registro cheio de sentidos, alguns mais ocultos que outros, que dão conta de um país dividido pelo Apartheid, eventualmente chegando até seu chamado “arquiteto”, o primeiro-ministro Henrik Frensch Verwoerd, assassinado em 1966.
Filme Particular, que tem seu roteiro assinado por Nagata e Clara Bastos, é uma aula de pesquisa e investigação.
‘Alan’
À medida em que diminui a distância entre os realizadores e o rapper, o filme ao qual assistimos se torna mais tenso, ambíguo.
O cineasta baiano Diego Lisboa começou a captar imagens de Alan do Rap, artista transgressor da cultura musical periférica de Salvador, de quem se torna amigo próximo, há pelo menos duas décadas.
O documentário Alan acompanha por mais de 10 anos, além da luta de seu protagonista por sobrevivência e visibilidade, o relacionamento entre Diego, seu irmão Daniel e seu personagem.
À medida em que diminui a distância entre os realizadores e o rapper, o filme ao qual assistimos se torna mais tenso, ambíguo e, exatamente por isso, mais interessante como documento.
Sem educação formal, porém muito articulado e hábil com seus versos e seu discurso, Alan era também ousado, petulante. Tinha o costume de invadir os palcos de outros artistas, tomar o microfone, para fazer ouvir a voz da favela, dos excluídos. Não tinha papas na língua.
Percebe-se no decorrer no documentário, que os irmãos Lisboa, fascinados por seu personagem, de alguma forma são por ele de certa forma catequizados, quase se rendendo a sua causa, o que pode ser muito perigoso em vários aspectos.
Envolvendo-se com o crime, Alan é preso e Diego consegue entrevistá-lo na penitenciária em Salvador, onde os realizadores gravam um apelo por ajuda do artista para a imprensa e para personalidades do mundo do rap, entre eles Mano Brown, líder dos Racionais MCs, que já conhecia Alan de quando, na capital baiana, ele invadiu um show do grupo paulista.
A resposta do rapper a Alan, gravada pelos irmãos Lisboa, é um dos mais dramáticos do filme. “O que você está fazendo para se ajudar, cara? Você sai do crime para o rap, e não do rap para o crime”, diz Mano Brown para a câmera, para Alan, que foi assassinado em 2012 pela polícia militar baiana em uma ação sangrenta que deixou vários mortos.
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