A cineasta nova-iorquina Karyn Kusama tem uma trajetória irregular, porém interessante. É até hoje lembrada pelo bom drama Boa de Briga, que revelou a atriz Michelle Rodrigues (da franquia Velozes e Furiosos) no papel de uma jovem boxeadora. Lançado em 2000, o filme chamou a atenção pelo frescor realista com que retrata a saga de Diana, cuja luta vai bem além do ringue. É pobre, hispânica e dona de um temperamento explosivo, características que a tornam alvo fácil de preconceitos, que passam pela tanto pela sua etnicidade quanto pela sua feminilidade ambígua.
O filme, sucesso no circuito independente à época, estabeleceu Kusama como uma “diretora de mulheres”, cuja obra compartilha um traço recorrente: seus longas sempre têm protagonistas fortes, com forte empenho físico, sempre lidando com algum tipo de violência. Foi assim com Aeon Flux (2005), misto de ficção científica e aventura estrelado por Charlize Theron, e com seu trabalho mais recente, O Peso do Passado, policial introspectivo que rendeu a Nicole Kidman (de As Horas) uma indicação ao Globo de Ouro de melhor atriz (drama) neste ano.
Nicole Kidman, que ano passado arrebatou todos os prêmios de televisão com a primeira temporada de Little Big Lies, gosta de correr riscos e não busca papéis fáceis.
A personagem central, Erin Bell, é uma detetive que está muito longe de ser uma heroína. O alcoolismo a envelheceu antes do tempo e também a afastou da filha, uma adolescente rebelde que não quer qualquer contato com a mãe, que não sabe como expressar afeto, carinho. A protagonista, embora seja reconhecida como policial, é vista como a imagem do fracasso por seus colegas. Muito por conta de uma investigação mal sucedida em que trabalhou como agente infiltrada.
O caso a traumatizou, mas apenas descobrimos por que aos poucos, por meio de flashbacks. A ação de O Peso do Passado inicia quando Erin se depara com provas de que o criminoso que não conseguiu prender está de volta e disposto a provocá-la. Encontrá-lo será uma forma de ajustar contas com a própria vida.
Nicole Kidman, que ano passado arrebatou todos os prêmios de televisão com a primeira temporada de Little Big Lies, gosta de correr riscos e não busca papéis fáceis. Erin está a um passo da caricatura, porque tenta ser uma versão feminina, porém masculinizada, do protagonista arquetípico de um film noir: o investigador atormentado. Para vivê-la, a atriz deixa-se enfeiar, abre mão de qualquer glamour, assim como Karyn Kusama já havia feito coma a personagem-título de Boa de Briga. Não se discute aqui a sexualidade da personagem, mas sua performance de gênero, muito fluida, por vezes limítrofe. Em alguns momentos, Nicole parece se esforçar demais em sua composição detalhista.
Sombrio, angustiante, O Peso do Passado é irregular, porém revela-se muito interessante ao nos conduzir em um mergulho tanto na subjetividade vulnerável de Erin quanto na marginalidade sórdida à qual ela retorna em busca de si mesma e colocando sua vida em risco.
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